Com passagem pelo Brasil, ‘Picasso chinês’ vai ganhar documentário
Por quase 20 anos, um senhor de feições orientais, barba longa e bengala em riste circulou pelos arredores de Mogi das Cruzes, no interior de São Paulo. No jardim chinês que construiu para se refugiar, pintou quadros expostos no Museu de Arte de São Paulo, no Museu de Belas Artes do Rio e na 6ª Bienal Internacional de Artes. Seus trabalhos, negociados em leilões pelo mundo todo, já somam US$ 1 bilhão, superando nomes tradicionais no Ocidente, como Pablo Picasso e Andy Warhol. A despeito do currículo impressionante, o maior mestre da pintura chinesa contemporânea, Zhang Daqian (1899-1983), segue desconhecido e quase apagado da história no Brasil.
Mas isso está prestes a mudar. Apaixonada pela vida e obra daquele que considera “o ‘Picasso chinês’, um gênio que inspirou a filosofia, a pintura e a caligrafia chinesa por todo o século 20”, a cineasta e professora da Universidade Estadual de San Francisco Zhang Weimin prepara um documentário que vai reconstruir os passos do pintor no Brasil e no resto do mundo. Em entrevista à Folha, Weimin conta que sempre ouviu falar sobre ele enquanto ainda vivia na China, mas foi uma filmagem antiga que despertou a vontade de produzir o documentário.
“Todos os chineses conhecem Zhang Daqian e sabem que ele deixou a China em 1949 por não concordar com valores comunistas, morrendo em Taiwan décadas depois. Mas em 2011, encontrei imagens da estadia dele na Califórnia. Fiquei chocada com a descoberta. Nunca imaginei que ele tivesse morado no Ocidente”, conta ela.
Os poucos segundos preservados em um rolo de câmera iniciaram uma investigação de anos. Foi quando a cineasta descobriu não só as andanças do pintor como os quase 20 anos em que ele viveu em um sítio localizado em Mogi das Cruzes.
História de idas e vindas
Para quem nasceu ainda durante o Império Chinês, Zhang Daqian teve uma vida curiosamente internacional. Natural de uma pequena vila na província de Sichuan, no oeste do país, o pintor nasceu em uma família de artistas. Ainda jovem foi estudar técnicas de tingimento para tecidos no Japão e, ao retornar à China, tornou-se um exímio plagiador de pinturas clássicas das dinastias Yuan, Ming e Qing. Rapidamente reconhecido pela técnica que deixava brilhante o azul e o verde em suas telas –uma habilidade de artistas antigos até então perdida na história–, conquistou notoriedade e fama entre os círculos elitistas de Xangai e Pequim.
Durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-1945), ele recusou as tentativas de cooptação dos invasores e se isolou em uma montanha, de onde produzia telas para sustentar a família e ajudar a financiar os compatriotas chineses. Ao fim do conflito e com a ascensão dos comunistas em 1949, Zhang preferiu deixar a China e se exilar no exterior. Passou por Hong Kong, pela Índia e chegou a viver dois anos em Mendoza, na Argentina.
Sem conseguir o visto permanente para ficar no país, ouviu de um amigo sobre Mogi, região que tradicionalmente recebeu grande imigração japonesa. Ele acabaria por fixar bases em 1954 no distrito de Taiaçupeba, onde investiu para construir um grande jardim chinês e viveu até 1973.
Nascido na mesma Mogi, o doutorando em Ciências Sociais na Unicamp e pesquisador associado do Zhang Daqian Research Center Guilherme Gorgulho ouviu a história do pintor chinês ainda em 1999. Desde então ele se dedica a reconstruir os passos do artista no Brasil e vem trabalhando como consultor no documentário de Zhang Weimin.
“Em termos temáticos, ter vivido no Brasil influenciou dezenas, talvez centenas de pinturas que ele fez. A paisagem de Mogi das Cruzes e de outros lugares por onde ele passou no sul e no sudeste brasileiros estão presentes em várias obras”, conta Gorgulho, que em 2018 ajudou a localizar um quadro pintado por Zhang, perdido nos arquivos do Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco e avaliado em quase US$ 800 mil.
Enquanto viveu no Brasil, revela Gorgulho, Zhang circulou por museus e galerias, viajou pelo país e chegou a participar de um programa de TV. Mesmo assim, o pintor jamais aprendeu a falar português e, portanto, não dava muitas entrevistas. No acervo da Folha, as menções a ele são poucas, todas informando sobre os trabalhos expostos em galerias da cidade em 1971 e 1973.
Com o terreno onde morou por tantos anos inundado pela represa do rio Jundiaí, os poucos registros da passagem do mestre chinês por São Paulo ficaram restritos a coleções particulares, telas perdidas e até hoje não identificadas por museus e na memória dos poucos habitantes da cidade paulista que o conheceram.
“Quando [o líder chinês] Xi Jinping veio ao Brasil e discursou no Senado em 2014, ele mencionou a passagem de Zhang pelo Brasil. É uma conexão com o nosso país que a China vem tentando reforçar. Mesmo assim, ele segue tão anônimo que há quem perca artes valiosíssimas presenteadas por ele porque não sabe que rolos não podem ficar expostos”, revela o professor.
Filmagens no Brasil
Foi Gorgulho a conectar a diretora Zhang Weimin ao Brasil. Durante as pesquisas sobre o pintor em 2013, ele acabou encontrando o site da cineasta, que ainda buscava informações sobre a vida de Daqian fora da China. Desde então, os dois já filmaram em três ocasiões: 2015, 2018 e 2019.
“Essas visitas ao Brasil foram muito interessantes porque me permitiram ver uma face de Zhang Daqian que nem eu nem ninguém na China conhecíamos: a de um artista sociável, que mesmo com as barreiras linguísticas fez amigos locais e chegou a participar de uma competição de cidades representando Mogi das Cruzes. Achei muito curioso”, diverte-se a diretora, que precisou interromper o trabalho em virtude das restrições de viagens por conta da pandemia.
Já Gorgulho destaca a importância do trabalho e faz votos para que o pintor se torne mais conhecido no Brasil. “Durante nossas pesquisas, descobri que ele chegou a ganhar um título de doutor honoris causa pela UFRJ e nem mesmo a família dele sabia disso. Há muito ainda a se conhecer sobre os anos em que o Zhang passou por aqui.”
Provisoriamente intitulado “Chang Dai-chien 1949”, o documentário ainda vai demandar pesquisas só possíveis quando as fronteiras internacionais estiverem abertas, explica Weimin. A diretora busca imagens e pessoas que tenham conhecido o artista durante a passagem dele pelo país e não pretende desistir do projeto. “Poucas pessoas influenciaram tantas áreas das artes chinesas como Zhang. Se eu pudesse descrevê-lo para alguém, diria exatamente que ele foi um artista indescritível.”
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