Brasil deveria entrar na ‘nova rota da seda’ da China? Talvez já esteja

Os números alardeados pela propaganda oficial impressionam: 70 países participantes, US$ 690 bilhões em investimentos e um longo cinturão conectando o leste asiático à Europa, África e, mais recentemente, à América Latina.

Sob vários ângulos, a “nova rota da seda da China” —oficialmente “Iniciativa do Cinturão e Rota”— tinha tudo para se tornar o projeto do século, o ponto de virada que tornaria Pequim um grande centro do comércio internacional.

O cancelamento de acordos assinados pela Austrália com a iniciativa e as dúvidas quanto à capacidade de economias de menor porte honrarem débitos contraídos com os bancos chineses, porém, acenderam o alerta amarelo: faz sentido para o Brasil se juntar ao pacote bilionário de infraestrutura?

Anunciado em um discurso do líder chinês Xi Jinping no Cazaquistão, o projeto surgiu com menos coesão do que faz parecer o governo. Falando a estudantes da Universidade Nazarbayev, Xi pregou o “estreitamento dos laços econômicos, o aprofundamento da cooperação e a expansão do espaço de desenvolvimento na região da Eurásia. Devemos adotar uma abordagem inovadora e construir em conjunto um cinturão econômico ao longo da Rota da Seda”, disse ele, em referência ao lendário trajeto que ligava a Ásia à Europa por volta de 200 a.C.

Membro sênior do John L. Thornton China Center do Brookings Institution, David Dollar era emissário do Tesouro americano na embaixada dos EUA em Pequim à época do discurso. Em entrevista à Folha, ele conta que a criação da marca “nova rota da seda” foi menos um projeto novo e mais uma forma de dar coesão a uma série de iniciativas que a China já vinha desenvolvendo desde que começou a internacionalização de empresas nacionais e o fortalecimento de laços diplomáticos estratégicos.

“Eles já estavam desenvolvendo vários projetos no exterior desde 2008, e Xi Jinping criou uma marca para algo que já existia. Surpreendentemente, a reação da imprensa ocidental a esse discurso e o destaque que os jornais deram ao termo [nova rota da seda] foram os prováveis fatores a consolidar a iniciativa para os chineses. Já naquela época era, sem dúvidas, um importante pacote de incentivos econômicos voltados ao desenvolvimento, mas o slogan político ajudou a dar credibilidade”, opina o economista.

Chineses visitam exposição sobre Iniciativa do Cinturão e Rota durante conferência organizada pelo Ministério dos Recursos Humanos. OIT/Divulgação

A impressão de que a Iniciativa do Cinturão e Rota surgiu mais como uma campanha publicitária do que um projeto bem delineado talvez ajude a explicar as evidências coletadas por Dollar nos anos seguintes ao anúncio de Xi.

Acompanhando o desenvolvimento do projeto, o economista conta que, a despeito dos anúncios grandiosos, os países que resolveram aderir ao projeto não receberam maiores investimentos chineses —em comparação com as economias que decidiram não se juntar à rota.

“Se você pegar os discursos oficiais de Xi e os documentos chineses, é sempre possível encontrar referências ao Cinturão e Rota como o coração de uma grande estratégia conectando a Ásia Central à Europa e à África, seja por terra ou pelo mar. Porém, a maior parte dos investimentos chineses em infraestrutura não está concentrada neste corredor. O Brasil e vários países africanos, por exemplo, receberam muito mais dinheiro, mesmo que nem todos estejam oficialmente ligados ao projeto chinês.”

Diplomacia flexível

Pesquisadores dos investimentos estrangeiros no Brasil, os professores Fábio Morosini da UFRGS e Michelle Ratton Sanchez, da FGV-SP, acompanham há anos o linguajar jurídico dos contratos assinados por empresas chinesas. Conduzindo um levantamento sobre a participação da China no setor de energia elétrica brasileiro, eles avaliam que a indiferença quanto a aderir ou não a Iniciativa do Cinturão e Rota se dá pelo dinamismo dos acordos selados pelos chineses.

“Existe uma discussão grande sobre o que é o modelo de cooperação dos Estados Unidos, ou como funcionam os marcos regulatórios da União Europeia. Percebemos que parece não haver um modelo chinês. Há flexibilidade para adaptar negócios, o que possibilita entrar em mercados diferentes, avaliando as ferramentas regulatórias e sensibilizando as estratégias de acordo com o ambiente jurídico local”, afirma Sanchez.

Além disso, segundo Morosini, comparações preliminares entre os acordos da Iniciativa assinados com países asiáticos ou europeus e os memorandos em vigor no Brasil parecem não trazer grandes diferenças.

O professor afirma que o Brasil já consolidou a posição de principal destino de investimentos chineses na América Latina e maior parceiro comercial de Pequim na região, dinâmica que uma negativa à Iniciativa do Cinturão e Rota dificilmente mudaria.

“Estudamos acordos bilaterais assinados entre 2005 e 2018, o que nos permitiu concluir que o tipo de linguagem e as áreas estratégicas previstas nas relações sino-brasileiras são quase iguais [aos da Iniciativa do Cinturão e Rota]”, diz Morosini. “A provocação que fazemos é: será que ainda faz sentido debater se vale se juntar ou não à Iniciativa quando a China já conseguiu entrar no Brasil, digamos assim, utilizando de instrumentos jurídicos tão parecidos?”

Iniciativa avança pela América Latina

Se para o Brasil o debate não parece mais fazer sentido, outros países latino-americanos enxergam o projeto chinês como um farol de possíveis investimentos na região.

Nos memorandos de entendimento, promessas para a construção de grandiosos projetos de infraestrutura ajudam a seduzir economias menos robustas, com menores ofertas de investimento estrangeiro direto disponíveis. A realidade, contudo, mostra que a diplomacia chinesa tem encontrado dificuldade em viabilizar esses projetos e ainda não conseguiu “encher os olhos” dos países mais 
representativos na região.

Pesquisador associado ao Instituto Internacional de Estudos Asiáticos da Universidade de Leiden, Rafael Abrão conta que, originalmente, a América Latina não seria incluída no projeto chinês, mas se tornou integrante por uma demanda dos países locais, ávidos por dinheiro chinês.

Sem grande planejamento de antemão, os chineses anunciaram a chegada do projeto à região trazendo poucos investimentos novos e renomeando iniciativas antigas —e algumas até já concluídas— como parte do Cinturão e Rota.

“Os chineses vêm ampliando a relevância na região há muito tempo e a América Latina é essencial ao desenvolvimento deles, à medida em que se consolida como a principal fonte de commodities. Tem um pouco de propaganda [na Iniciativa], mas parece haver também um desejo genuíno de impulsionar uma infraestrutura que facilite o escoamento e a exportação dessas mercadorias para a China”, afirma Abrão.

O pesquisador destaca que todos os países latinos possuem déficits de infraestrutura e podem se beneficiar de possíveis parcerias com os chineses, embora seja necessário avaliar os riscos. Recentemente, a construção mal planejada de hidrelétricas no Equador usando dinheiro chinês deixou Quito em débito com o país, que agora quer ser ressarcido com petróleo, como previa o contrato inicial.

O fracasso do investimento prejudicou a imagem da China entre equatorianos e fez ressurgir o temor da “armadilha da dívida”, usada por países europeus e pelos EUA para acusar Pequim de coagir economias frágeis a assumirem grandes empréstimos, exigindo concessões quando não conseguem receber de volta o dinheiro.

“Esse risco não é recente e não se restringe à China. A própria Argentina está em uma situação bem delicada com o dinheiro que pegou do FMI. Mesmo assim, é importante que os países sejam responsáveis ao assumir compromissos de longo prazo com bancos chineses”, aconselha Abrão.

Dollar segue o mesmo entendimento. “Não gosto desse conceito de ‘armadilha da dívida’ porque não acredito nem por um segundo que chineses emprestam dinheiro já na expectativa de levar um calote. Se estes exemplos nos dizem algo, é que bancos chineses têm feito um trabalho ruim na análise de risco e que os países precisam escolher levantar projetos sustentáveis”.

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