Com menos nascimentos, China caminha para ‘desastre demográfico’

Enquanto a China colocava em órbita as partes de uma nova estação espacial e pousava um robô em Marte, apenas uma notícia disputava atenção equivalente entre jornalistas e sinólogos: os dados do censo demográfico decenal, divulgados com mais de um mês de atraso pelo Escritório Nacional de Estatísticas. Rumores divulgados pela imprensa internacional indicavam uma redução populacional pela primeira vez em mais de 50 anos e previam o início de uma catástrofe demográfica, capaz de frear o grande crescimento econômico observado no país por mais de quatro décadas.

Os resultados trouxeram alívio momentâneo para Pequim, mas o prospecto passou longe das projeções otimistas. A população de fato cresceu: passou de 1,34 bilhão em 2010 para 1,41 bilhão de pessoas em 2020, consolidando a China como a nação mais populosa do mundo. Mas as notícias boas pararam aí.

No ano passado, apenas 12 milhões de bebês nasceram na China, marcando uma queda de 18% em relação a 2019 (14,65 milhões) e atingindo a marca do quarto ano de consecutivos declínios na estatística. São números astronômicos, mas insuficientes para conter um problema maior: a população envelhece rapidamente (passou de 13% para mais de 18% a proporção de idosos em 10 anos) e, em breve, haverá poucos jovens em idade ativa para trabalhar e fazer a economia continuar crescendo.

Doutorado em demografia pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e ex-professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas vinculada ao IBGE, o pesquisador José Eustáquio Diniz Alves estuda a tendência de queda no país asiático e explica as razões históricas para o problema. Autor de vários artigos sobre o tema, Alves afirma que as taxas de natalidade eram altas mundialmente no início dos anos 1950, mas depois foram naturalmente caindo com democratização do acesso à contracepção, educação e ampliação do mercado de trabalho.

Na China, porém, as famílias continuaram crescendo especialmente após o Grande Salto Adiante, a desastrosa política imposta pelo líder comunista Mao Tsé-Tung para ultrapassar a economia britânica e que terminou com mais de 40 milhões de pessoas mortas de fome.

“As famílias perderam muitas crianças para a fome até que a política chegasse ao fim em 1960 e queriam ‘repor’ os filhos que tinham falecido. Além disso, a Revolução Cultural [1966-1976] desestruturou totalmente o setor de saúde, varrendo as institucionalidades que existiam no planejamento familiar e praticamente cessando o acesso a métodos contraceptivos, o que fez a taxa de fecundidade chinesa chegar a seis filhos em média”, relembra o professor.

As discrepâncias levaram a um aumento recorde na chamada população demograficamente dependente, ou seja, que a maioria dos chineses ainda estava em idade escolar e, mesmo trabalhando no campo, seria incapaz de atingir índices de produtividade que gerassem crescimento econômico. Já nos últimos anos do governo Mao, a China adotou uma campanha de propaganda para incentivar a redução no número de filhos, com distância maior de idade entre as gestações e melhor qualidade e chegou a reduzir significativamente os novos nascimentos: de 5,7, a taxa de fecundidade caiu para 2,7. Mas a morte de Mao e a chegada de Deng Xiaoping à liderança nacional fez o país dobrar a aposta.

Ao argumentar que o contínuo crescimento populacional colocava em xeque sua política de quatro modernizações (indústria, agricultura, defesa e ciência e tecnologia), Deng radicalizou e em 1979 lançou a Política do Filho Único, uma das causas centrais para os problemas demográficos enfrentados pela China hoje.

‘Política autoritária e desastrosa’

Sob as novas regras, casais poderiam ter um único filho, com raras exceções concedidas a minorias étnicas e a algumas regiões rurais. Quem descumprisse a lei era submetido a abortos e esterilização forçada, além de pesadas multas e até prisão. Por um tempo pareceu funcionar: os nascimentos caíram consistentemente nos anos seguintes, seguidos de milhares de casos de infanticídios (como, na tradição chinesa, meninos são os preferidos, bebês do sexo feminino eram assassinadas antes ou até depois do parto) e o surgimento de um amplo sistema de tráfico de crianças rejeitadas pelos pais.

“Bastava ampliar a conscientização iniciada ainda no início da década, mas os chineses preferiram adotar uma política autoritária, que fere os direitos de fecundidade de forma desastrosa e trouxe problemas também à proporção entre homens e mulheres hoje em dia”, avalia Alves. O demógrafo explica que a ideia previa “engordar o meio da pirâmide etária, gerando o que chamamos de bônus demográfico, essencial a todos os países que passaram por períodos contínuos de desenvolvimento”.

Pôster de propaganda afixado na zona rural chinesa traz a legenda “Eu tenho meu certificado de Filho Único”. Katte Belletje/CC BY-NC 2.0

A estratégia inundou o mercado de trabalho com jovens sem filhos, prontos para trabalhar longas jornadas e sustentar a economia chinesa. A Política do Filho Único foi abolida oficialmente em 2015 (agora é possível ter dois), mas ainda assim há sinais de esgotamento: se, antes do censo, estatísticos da ONU previam o início da redução no número de chineses entre 2027 e 2029, os dados revelados neste mês mostram que a queda pode chegar muito antes do previsto.

“É bastante provável que comecemos a ver uma redução a partir do ano que vem ou de 2023. Até o fim do século, a China deve perder 400 milhões de pessoas, quase duas vezes a população do Brasil. Esta é uma tendência quase irreversível, considerando a taxa de fecundidade atual em 1,3 filho, bem abaixo dos 2,1 necessários para o que chamamos de reposição demográfica, ou seja, o índice considerado mínimo para manter a população estável”, explica José Eustáquio.

‘Chinesas são usadas como ferramentas reprodutivas do governo’

Autora de dois livros, “Enfrentando o Dragão” (Matrix Editora) e “Leftover Women: The Resurgence of Gender Inequality in China” (inédito no Brasil), sobre o movimento feminista e o impacto de políticas demográficas para mulheres chinesas, a professora adjunta da Universidade de Columbia, Leta Hong Fincher defende que há um longo histórico na China comunista no uso de mulheres como ferramentas reprodutivas que atendam às demandas demográficas impostas pelo governo: quando é preciso diminuir os nascimentos, há abortos forçados e, quando é preciso aumentar, há campanhas inteiras dedicadas a constranger quem prefere não ser mãe e continuar solteira.

“Eu acho, porém, que aumentar o número de nascimentos será uma tarefa extremamente difícil porque eles [o governo] não querem qualquer tipo de bebê. É preciso que eles sejam produto de jovens, urbanos, casados e da maioria étnica han. O partido não está interessado em ter mais crianças uigures muçulmanas ou filhas de mães solteiras”, diz ela. “E este é um grande problema. Nas minhas pesquisas, essa mãe ideal, jovem e han está preocupada com os custos de sustentar um bebê. Está preocupada com seu sucesso profissional e o quanto isso vai impactar na capacidade de cuidar dos parentes, cada vez mais velhos e dependendentes”.

Fincher defende que gastos mais vultosos com um sistema de proteção social e subsídios financeiros, além da criação de uma rede de creches, poderiam ser benefícios que ajudassem a convencer mulheres a terem mais filhos. Mesmo assim, a professora diz não enxergar um governo “preparado para lidar com essas questões”. Ao contrário, autoridades parecem encontrar na propaganda e no constrangimento público as armas para resolver o problema.

Professora da Universidade de Columbia, nos EUA, Leta Hong Fincher considera difícil reverter queda na população chinesa. Nora Tejada/Arquivo pessoal

Desde 2007, veículos de imprensa estatal passaram a utilizar pejorativamente o termo ‘shèngnǚ’ (ou “mulheres que sobram”) para debochar de “jovens de alta qualidade, com ensino superior, aptas a se casarem e que, mesmo assim, decidem não serem mães ou constituir família”.

“A China se sustenta em um modelo autoritário que depende do controle patriarcal e de famílias ao modelo tradicional, com homem, mulher e filhos. O despertar do feminismo e os níveis de educação feminina mais altos —uma tendência global também observada na China— desafiam essa lógica e tornam mulheres mais conscientes sobre os custos e os sacrifícios dessa escolha [ser mãe]”, analisa.

“Talvez um alívio para essas estatísticas sejam novamente as mulheres, desta vez as solteiras que não conseguem permissão para terem filhos solo. As crianças nascem sem ‘hukou‘ [documento de identidade essencial para o acesso a serviços públicos chineses].”

O demógrafo José Eustáquio Alves tem outra teoria. Ele afirma acreditar que chineses conseguirão amortecer o impacto da redução populacional com inovações tecnológicas e, no curto prazo, podem até ganhar em índices de produtividade. “A essa altura, só há duas soluções. A primeira é a abertura à imigração, algo que o governo chinês indica não estar disposto a ceder. O outro é investir em qualificação e tecnologia. Talvez a gente descubra em algumas décadas que essa queda não só não prejudicou o crescimento econômico como pode ter até um efeito positivo para o ambiente”, projeta com otimismo.

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