Durante pandemia, direita domina debate sobre China no Twitter

Se na esfera geopolítica o mundo parece caminhar para uma polarização em blocos pró e anti-China, entre os brasileiros no Twitter um lado tem dominado o debate. Um relatório inédito mostra que postagens de perfis de direita representam 70,44% da atividade na rede social nos últimos seis meses sobre o país asiático. Mesmo com um número reduzido de cadastrados no Brasil (a rede estima ter cerca de 14 milhões de perfis brasileiros), os resultados ajudam a entender o tom nas discussões sobre a China desde o início da pandemia.

O estudo foi produzido pela companhia de inteligência de mídia Oros em parceria com a F451 e cedido à Folha. Ao analisar um universo de mais de 111 mil posts no Twitter, pesquisadores da Oros identificaram que a conversa nas redes brasileiras estão concentradas em um tom altamente crítico e anti-China. Nesta categoria, posts dos jornalistas Augusto Nunes e Rodrigo Constantino, do blog Terça Livre, do portal O Antagonista e da influenciadora e ex-jogadora de vôlei Ana Paula Henkel são os mais compartilhados.

Já no campo da esquerda —responsável por 29,56% do volume analisado—, os posts conciliam críticas ao governo chinês e análises geopolíticas. O perfil dos influenciadores mais compartilhados, porém, é menos diverso: todos são políticos. Destacaram-se no relatório os petistas Lula e Fernando Haddad, o governador de São Paulo, João Doria, e os ex-candidatos à presidência e vice-presidência Guilherme Boulos e Manuela d’Ávila.

A definição de esquerda e direita na metodologia é demarcada pela “bolha” em que cada perfil está inserido. Os dois espectros são divididos em cores (vermelho para a esquerda, verde para a direita), e o robô que faz as análises verifica a ramificação de um perfil, atribuindo notas que vão de 1 vermelho (totalmente dentro da bolha da esquerda) a 1 verde (totalmente dentro da bolha da direita). O método explica por que Doria não entra na análise como um político de direita.

Gráfico gerado pela análise da Oros mostra dominância de perfis ligados à direita (em verde) no debate sobre China. Oros Mídia/Divulgação

Sócio-fundador da Oros, o mestre em comunicação e economista Daniel Guinezi conta que o mapeamento identifica “quem é mais vocal na rede”. Assim, as pessoas com perfil mais ativista conseguem dominar quantitativamente as menções.

“O tom da conversa no Twitter tem sido guiado principalmente pela conspiração. São acusações de que o vírus é chinês, que foi feito em laboratório e que apontam a China como o grande inimigo do mundo”, afirma, acrescentando que as hashtags relativas à China mais usadas no período analisado foram #ViruséChinês, #ChinatemquePagar e #ChinaGenocida.

Guinezi observa ainda que o Twitter é uma rede “altamente politizada”, em que o debate se dá “não muito por eixos temáticos, mas ideológicos”. Para ele, “a articulação da direita durante a pandemia tornou a China o grande inimigo, fruto de muitas menções negativas”.

“Isso não significa que o debate sobre a China no país é à direita, mas ela é sem dúvidas a mais vocal. Mesmo assim, identificamos diversas páginas focadas em geopolítica, com análises aprofundadas sobre a China, que parecem indicar ainda haver espaço fértil para a continuidade dessas discussões de fôlego”, comenta.

Pandemia motiva ataques virtuais

A piora na visão dos brasileiros sobre a China em ambiente virtual também fez aumentar a xenofobia à comunidade asiática, sobretudo chinesa. Desde o ano passado, o Instituto Sociocultural Brasil-China (Ibrachina) mantém uma central de denúncias de racismo contra chineses. O objetivo é centralizar informações sobre os crimes, reunindo dados e fazendo uma ponte com autoridades brasileiras para ajudar nas investigações. Já são mais de 97 denúncias recebidas desde março de 2020.

Para o presidente do instituto, Thomas Law, os ataques estão ligados a uma questão estrutural na dinâmica do racismo no Brasil e foram encorajados por autoridades. A organização, que também faz o monitoramento do discurso em redes sociais, identificou o recrudescimento nas opiniões postadas sobre o país asiático.

“O discurso de pessoas influentes e a propagação de fake news levaram à intensificação desses ataques. Quando uma pessoa em posição de poder tem uma atitude, outras pessoas sentem-se legitimadas para agir da mesma forma. O preconceito tem origem no desconhecimento do que é diferente, é julgar sem conhecer. Do preconceito à discriminação e ao racismo é um passo”, afirma.

Com o aumento da violência virtual, a comunidade chinesa tem se movimentado com cautela. Consulados da China em São Paulo e no Rio de Janeiro emitiram alertas pedindo que chineses vivendo no Brasil fiquem “atentos ao sair para a rua”. 

Fundadora da escola OiChina Mandarim Online e seguida por mais de 840 mil pessoas no TikTok, a professora Yili Wang sentiu na pele o crescimento no número de ataques online. 

No Brasil desde 2007, quando foi matriculada em uma escola católica de ensino médio, Yili conta que foi bem recebida por colegas, ainda que não falasse português à época e fosse vista como um “urso panda, algo meio exótico”. Desde então, o que antes ela enxergava como desconhecimento acabou virando ondas de mensagens racistas e xenofóbicas.

“Como sou professora de chinês, sempre fui cercada de pessoas que gostam e querem conhecer e aprender sobre o nosso idioma e cultura. Mas na pandemia descobri que, apesar de terem se passado mais de dez anos da minha chegada ao Brasil, o desconhecimento sobre o país não só aumentou, mas piorou e se transformou em preconceito e ódio”, lamenta.

No Brasil desde 2007, a professora de mandarim Yili Wang conta ter sentido aumento nos ataques xenofóbicos online.

A professora conta ainda que foi chamada na internet de “vírus”, “lixo”, “comedora de morcego, rato e cachorro” e “agente do governo chinês”. Além disso, muitas mensagens mandavam que ela voltasse para a China. Ela relata que os ataques a deixaram com medo de sair de casa e preocupada com a segurança da família.

“Fiquei muito abalada. Comecei a refletir, de verdade, sobre meu propósito. Parece que todos esses anos de esforço para divulgar a cultura e desmistificar a China foram em vão. Concluí que minha missão se tornou mais importante que nunca: disseminar uma China mais real e tentar mudar a visão limitada e racista sobre o meu país”, diz a professora, que diz evitar falar sobre os ataques com familiares chineses para que não se preocupem com a segurança dela.

Para o professor de direito internacional e coordenador do Núcleo Brasil-China da Fundação Getúlio Vargas, Evandro Carvalho, as autoridades precisam agir para coibir os casos. Segundo Carvalho, a pandemia fez dos chineses os novos alvos de discriminação racial, sobretudo nos países em que os líderes começaram a usar expressões como “vírus chinês” e “vachina” como forma de ataque.

“É sempre bom lembrar que o racismo é crime inafiançável e imprescritível. O crime de injúria racial pode levar o racista a ser condenado à pena de reclusão de um a três anos, mais multa. A nossa Constituição Federal tem um preceito civilizatório importante que dispõe que um dos objetivos fundamentais do nosso país é promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça. Infelizmente temos ainda um longo caminho a percorrer até alcançarmos uma sociedade mais inclusiva e respeitadora das diferenças. Afinal, aqui no Brasil não são só chineses que sofrem discriminação.”

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