Pedido de desculpas de ator americano alimenta debate sobre Taiwan e censura
Famoso lutador de luta livre e estrela de “Velozes e Furiosos”, o ator americano John Cena achou que seria uma boa ideia divulgar o nono filme da franquia em Taiwan falando em mandarim. Entrevistado por uma rede de televisão local, Cena se meteu em uma enrascada com ramificação política: anunciou alegremente que a ilha –considerada uma província rebelde pelo governo em Pequim– seria o “primeiro país” a assistir à produção.
A reação online foi imediata, levando Cena a se desculpar em mandarim para seus mais de 600 mil seguidores no Weibo (espécie de Twitter chinês) e motivando uma grande discussão acadêmica sobre a assertividade chinesa e a autocensura nos países ocidentais.
Localizado a 180 quilômetros da costa chinesa, o arquipélago de Taiwan é povoado por chineses da etnia han desde o século 13 e já foi dominado por holandeses, espanhóis e japoneses. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a rendição de Tóquio, o território retornou brevemente ao controle da China continental em 1945, algo que durou pouco: com o fim da guerra civil chinesa quatro anos depois, o arquipélago se tornou o refúgio dos nacionalistas do Partido Kuomintang que tentavam escapar do Partido Comunista Chinês, que conquistou o controle do território continental.
Governado inicialmente por uma ditadura que reclamava domínio sobre todo o território chinês, o arquipélago perdeu relevância ao ser substituído pela China comunista no Conselho de Segurança da ONU em 1971, manobra do ex-presidente americano Richard Nixon para se aproximar de Mao Tsé-tung.
Sem poder político internacional, a província adotou o regime democrático no início dos anos 1990 e conta agora com uma considerável parcela da população que deseja a independência. Ao chamar Taiwan de país, Cena indiretamente reconheceu a soberania do governo em Taipei sobre o território, pisando em um calo histórico da China comunista que tenta a reunificação desde que foi fundada.
Para a pesquisadora associada do Instituto Asiático da Universidade de Melbourne Melissa Conley Tyler, a reação online é parte de uma extensa estratégia de Pequim para dissuadir Taiwan de declarar independência e pressionar o governo a negociar o retorno do território.
Acadêmica visitante no Ministério das Relações Exteriores taiwanês, Conley Tyler afirma acreditar que as tensões tornaram-se mais evidentes recentemente com a ascensão do Partido Democrata Progressista taiwanês ao Executivo, considerado mais independente.
“A China tem sido paciente e vem usando meios políticos para promover a reunificação, tendo como limite a data de 2049, quando se completam os cem anos da fundação da República Popular comunista. O líder chinês, Xi Jinping, porém, tem tocado nessa questão com mais frequência, defendendo que o problema não pode ser passado de geração para geração. É possível que ele queira ser o líder a receber o crédito pelo retorno de Taiwan”, explica Conley Tyler.
Citando pesquisas de opiniões recentes realizadas no arquipélago, a pesquisadora afirma que Taiwan acabou desenvolvendo “sua própria identidade como um lugar distinto” da China continental e que Pequim vai precisar vencer uma barreira popular caso queira discutir a reunificação em termos pacíficos: “A maioria prefere a independência, com dois terços apoiando-a se Taiwan puder manter relações pacíficas com a China e quase metade defendo a separação, mesmo que isso levasse a China ao ataque”, detalha.
O antagonismo do ex-presidente americano Donald Trump à China continental também aumentou as tensões na região. Quando foi eleito em 2016, Trump se tornou o primeiro presidente a aceitar uma ligação da Presidência taiwanesa parabenizando-o pela vitória. O telefonema acendeu a luz amarela entre líderes comunistas, que passaram a duvidar do compromisso americano à “política de China única”, um princípio ambíguo em que os Estados Unidos reconhecem a existência de uma só China, evitando debates separatistas, mas sem se comprometer sobre qual das duas Chinas seria a “verdadeira”.
“Com Trump, os Estados Unidos se tornaram mais ativos em seu apoio a Taiwan em termos de venda de armas, melhorando o contato com as autoridades. Sob Biden, tem havido um esforço para atrair parceiros e aliados para mostrar apoio [ao arquipélago]”, diz Conley Tyler, mencionando discussões bilaterais do presidente democrata com o primeiro-ministro japonês, Yoshihide Suga, e o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, nas quais o assunto foi mencionado como motivo de preocupação regional.
Autocensura em foco
O pedido de desculpas do ator americano parece ter dado certo: o novo filme da franquia “Velozes e Furiosos” não desapareceu da programação na China continental. O vídeo em que Cena assume (em mandarim) ter cometido um “erro” e reafirma o “amor e o respeito à China e ao povo chinês” fez sucesso nas redes sociais e parece ter acalmado os ânimos de espectadores e oficiais da censura em Pequim.
Contudo, do outro lado do mundo, o vídeo recebeu uma enxurrada de críticas fora da China. Na Austrália, um canal de TV classificou o pedido de desculpas como “rastejante e patético”, enquanto o portal americano The Hill se referiu à iniciativa como uma “reverência nojenta à China”. No Twitter, milhares de internautas comentaram sobre o aumento da autocensura entre pessoas e empresas ocidentais para agradar Pequim e proteger negócios na China.
Para o diretor de pesquisa da rede Observa China e doutorando em Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Paulo Menechelli, a questão é cada vez mais presente.
O professor, que pesquisa o soft power chinês no cinema, diz que o considerável aumento nos filmes blockbusters tornou Hollywood cada vez mais dependente de bilheterias significativas. Devido à pandemia, o país ultrapassou os EUA em 2020 e se tornou o maior mercado cinematográfico mais lucrativo do mundo, liderando também o ranking dos países com o maior número de salas de exibição. Atualmente são 77.769, 2.000 das quais construídas apenas entre janeiro e fevereiro deste ano (a título de comparação, os Estados Unidos registravam 44.111 salas até o fim de 2020).
“O modelo força os estúdios a correrem atrás do lucro a todo custo, cedendo à ingerência dos censores chineses. Algumas produções até alteram o roteiro, criando uma versão específica para os chineses”, comenta Menechelli, à exemplo de “Homem de Ferro 3”, em que o herói Tony Stark é tratado por acupunturistas na cópia distribuída na China.
O pesquisador explica que essa estratégia não é nova —afinal, foi da tentativa de aproximação do ex-presidente Franklin Roosevelt com o Brasil que surgiu o carismático papagaio da Disney Zé Carioca—, e gera uma dinâmica geopolítica interessante: ao contrário da Guerra Fria, quando personagens soviéticos eram frequentemente retratados como vilões, a dependência americana da bilheteria chinesa fez desaparecer das telas os antagonistas da China.
Mais: em “Perdido em Marte” são os chineses a construírem a nave para buscar o astronauta americano. Na nova versão de “Amanhecer Violento”, a China invadiria os Estados Unidos, e o estúdio alterou digitalmente o filme para mudar para a Coreia do Norte.
“No ano passado, o Congresso americano tentou passar uma lei que proibia o acesso de estúdios a fundos governamentais caso façam concessões à China. Todo mundo riu porque o financiamento estatal americano ao cinema é insignificante se comparado à receita dos filmes em salas chinesas. Então é provável que esse debate causado pelo vídeo do John Cena se torne cada vez mais frequente”, prevê Menechelli.
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