O que a história de um casal revela sobre o preconceito contra LGBTs na China

Ao sair da faculdade em 2019, Xiao Mei* estava animada. Recém-formada em língua inglesa na Universidade Sun Yat-sen, ela tinha acabado de conseguir um emprego como professora em uma escola de elite e finalmente poderia se mudar de Guangzhou, no sul da China, para viver com a namorada em Shenzhen.

De malas prontas e contrato de aluguel assinado, o casal foi surpreendido por uma mensagem dias antes da viagem: a escola estava cancelando o contrato sob a alegação de que Mei não era apta para o trabalho. Elas descobriram mais tarde que a dispensa foi motivada por uma foto em que beijava a namorada no rosto, postada apenas para amigos no aplicativo WeChat, mas vazada para os futuros chefes pelo sogro de Mei, que não aceitava o relacionamento.

“Quando disse à escola que tinha assumido dívidas para me mudar para uma cidade tão cara quanto Shenzhen, disseram que não recuariam, pois eu poderia encorajar meus alunos a aceitarem relações ‘doentias”’, conta.

O sogro, dono de uma pequena fábrica no leste do país, ofereceu-se para pagar as contas contraídas pela namorada de Mei, sob a condição de que terminassem o relacionamento. Elas não aceitaram.

“Meu salário na escola seria alto, então tínhamos escolhido um apartamento em uma região mais nobre e gastado com mobília de melhor qualidade. Minha namorada não conseguiria arcar com os custos sozinha, e foi preciso trabalhar em dois empregos por cerca de dez horas diárias até juntar o suficiente para quitar os empréstimos que fizemos com amigas”, relembra.

O caso está longe de ser uma exceção. No início de junho —coincidentemente, o mês em que o orgulho LGBTQIA+ é celebrado—, um casal de mulheres lésbicas conseguiu que um processo por discriminação a minorias fosse aceito pela Corte Distrital de Changning, em Xangai, uma das mais importantes do país.

Como reportado pelo jornal South China Morning Post, elas pretendiam celebrar o dia dos namorados (usualmente comemorado na China no dia 21 de maio) e compraram um pacote com descontos para casais em um zoológico em Guangzhou. Quando tentaram usar os ingressos, foram informadas pelos funcionários que “casais são formados apenas por um homem e uma mulher” e que deveriam “ter se informado sobre as políticas do local antes de comprar as entradas”.

Nacionalismo e preconceito

Mesmo com várias personalidades e até imperadores gays em sua história, a China só descriminalizou a homossexualidade em 1997. Quatro anos depois, a terceira edição da Classificação Chinesa de Transtornos Mentais removeu a homossexualidade da lista de transtornos mentais, mas manteve a categoria “homossexualidade ego-distóica”, uma condição abolida da lista de doenças reconhecidas pela OMS em 1986 e que descreve pessoas que não aceitam a própria sexualidade. A decisão abriu brechas para terapias de conversão e manteve viva a patologização da sexualidade não heterossexual.

Para Séagh Kehoe, especialista em estudos de gênero e minorias sexuais na China, o foco da era Xi Jinping em “valores familiares” e as “ansiedades demográficas em torno da queda nas taxas de fecundidade e envelhecimento da população” aprofundaram o preconceito contra casais LGBTQIA+. Lecionando na Universidade de Westminster, no Reino Unido, Kehoe defende que a ascensão do nacionalismo —”quase sempre profundamente patriarcal e heteronormativo”— estigmatiza a sexualidade de minorias, enquadrando-a como um “valor ocidental”.

“A ênfase em promover o casamento heteronormativo e em ter filhos faz parte da obsessão mais ampla de estabilidade social do estado. O nacionalismo marca pessoas, desejos e práticas LGBTQIA+ como algo diferente e de outro lugar, basicamente ‘não chinês’. Ativistas que combatem o preconceito são reprimidos, e as autoridades também banem rotineiramente o conteúdo queer em filmes, séries de TV e online, criando uma cultura de silêncio, estigma e, às vezes, com ideias bastante limitadas sobre o que é família”, avalia.

Kehoe diz acreditar que dinâmicas machistas, comuns mesmo entre a comunidade queer, também são corriqueiras na China e que “homens e mulheres gays são percebidos de maneiras diferentes”.

“Isso afeta desproporcionalmente as mulheres queer, sua participação, capacidade de serem ouvidas e de liderar. É por isso que há tanta sobreposição entre o ativismo queer e o feminista na China”, afirma, destacando, porém, que homens gays estão sujeitos à pressão da sociedade e do governo para “cultivarem a masculinidade”.

Casamento igualitário

Em 2019, a China abriu para consulta pública a possível inclusão do casamento entre pessoas do mesmo sexo em seu primeiro Código Civil, lançado oficialmente no ano passado. Quase 200 mil pessoas apelaram pela aprovação, mas a possibilidade foi descartada pelo Comitê Permanente da Comissão de Assuntos Legislativos do Congresso Nacional do Povo alegando a necessidade em se manter “a monogamia heterossexual alinhada às normas culturais tradicionais da China contemporânea”.

Mei diz que a falta de um arcabouço legal que proteja a união com sua namorada é motivo constante de preocupação.

“A minha família não apoia, mas também não desrespeita a minha relação. Já a família da minha namorada tem muitos membros influentes na cidade dela, querem evitar um escândalo. Imaginar uma situação em que eu ou ela fiquemos doentes e precisemos que uma das duas acesse contas bancárias ou assine autorizações me deixa ansiosa. Também nos desencoraja a ter um filho, já que não poderemos registrar a criança com duas mães”, desabafa.

Kehoe destaca que enquadrar a homossexualidade em oposição às “normas culturais tradicionais” da China dificulta vislumbrar um cenário em que o Estado apoie a igualdade no casamento. Mesmo assim, aprovar o casamento igualitário no país não é impossível, e “pressões sociais podem obrigar o Estado a ceder”.

“Pessoas queer não têm proteção legal para orientação sexual e identidade de gênero, nenhum direito legal de adotar, nenhum tipo de relacionamento entre pessoas do mesmo sexo reconhecido por lei. Contudo, ativistas queer na China fazem um trabalho realmente incrível na promoção de mudanças e são muito criativos na forma como lidam com questões como censura ou defendem a inclusão LGBTQIA+ na sociedade, então veremos”.

*O nome foi alterado a pedido da entrevistada.

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