Pouco representadas no PC Chinês, mulheres são incentivadas a cumprir ‘papéis tradicionais’

Partido sob Xi Jinping passou a reforçar dever como ‘esposas e mães’ para  enfrentar desafios demográficos

No dia 1º de julho, enquanto Xi Jinping discursava na Praça da Paz Celestial para uma plateia cuidadosamente escolhida por ocasião do centenário do Partido Comunista Chinês, a câmera da TV estatal passeava pelos convidados de honra sentados próximos ao púlpito. Os mais atentos talvez tenham percebido uma categoria pouco representada ali: mulheres.

Não é uma coincidência. O último censo demográfico, divulgado em maio pelo Escritório Nacional de Estatística da China, mostrou que mulheres correspondem a 48,76% da população, ou cerca de 688,44 milhões dos 1,4 bilhão de habitantes do país asiático. A representação feminina dentro do Partido Comunista, porém, é significativamente menor. Dados compilados em 2019 revelam que apenas 27,9% dos filiados são mulheres —e esse número tende a ser menor quanto maior for a importância do cargo.

Entre os delegados do Congresso Nacional do Povo e os membros da Conferência Consultiva do Povo Chinês, os mais altos órgãos na estrutura legislativa do país, apenas um quinto é formado por representantes femininas. No Politburo, que conta com 25 membros, há apenas uma —a vice-primeira-ministra Sun Chunlan—, e, desde a fundação da república comunista, em 1949, nenhuma mulher foi escolhida para ocupar uma das sete cadeiras do Comitê Permanente do Politburo, o topo da hierarquia burocrática.

Ainda que o próprio partido mencione entre suas prioridades a necessidade de recrutar mais mulheres e o governo estabeleça uma cota de 10% em postos executivos em nível local (vilas, condados, cidades e províncias), a meta raramente é atendida.

Especialista na estrutura do PC Chinês e consultor de assuntos sobre a China no Grupo Eurasia, Neil Thomas diz que os números atuais representam uma melhoria, já que em 1998 mulheres respondiam por apenas 16,6% dos filiados. Ele afirma existir uma “preferência institucionalizada” por líderes masculinos e um foco cada vez maior para que mulheres cumpram “papéis tradicionais de gênero e venham a se tornar esposas e mães, ajudando a enfrentar desafios demográficos que podem ameaçar a estabilidade do país”.

“Não se pode questionar publicamente a política do partido, e está ficando mais difícil fazer isso, mesmo nas reuniões internas. Portanto, se você é mulher, há um nível extra de pressão para obedecer as leis e os regulamentos que estimulam ter mais filhos e ser mais responsável ​​por cuidar dos filhos e dos afazeres domésticos”, diz Thomas.

A situação atual contrasta com a época em que o PC Chinês foi fundado, em 1921. Iniciado na Universidade de Pequim, o movimento anti-imperialista cobrava uma postura mais dura dos nacionalistas no combate às tropas invasoras japonesas e na rejeição aos termos do Tratado de Versalhes que mantinham retalhos do país nas mãos de forças estrangeiras. Naquele momento, as estudantes se juntaram aos manifestantes por participação política e foram, mais tarde, cooptadas na formação do partido que surgiria dois anos depois.

Contudo, a ascensão de Mao Tse-tung ao poder em 1949 e o foco em questões de classe desviaria o partido do seu objetivo histórico de alcançar a igualdade de gênero na China, como explica Zheng Wang, professora de estudos de gênero na Universidade de Michigan e autora do livro “Finding Women in the State: A Socialist Feminist Revolution in the People’s Republic of China” (encontrando mulheres no Estado: uma revolução socialista feminista na República Popular da China, inédito no Brasil).

Zheng afirma que, após o fim da guerra civil e a vitória dos comunistas, boa parte dos membros da legenda vinha da zona rural, onde os valores tradicionais e ligados ao patriarcado ainda estavam bastante vívidos. Foram os homens que lutaram no conflito os primeiros a ganhar cargos de maior importância na estrutura estatal, e, com o recrudescimento ideológico de Mao, a agenda feminista foi deixada de lado.

“No início da China comunista, essas feministas foram capazes de implementar uma série de leis e políticas para promover os direitos e os interesses das mulheres. Isso criou um tremendo progresso social para as chinesas, mas a partir de 1964 Mao resolveu se dedicar à luta de classes. A equidade de gênero então se perdeu”, diz Zheng.

A partir daí –e especialmente após o início da Revolução Cultural em 1966–, as feministas foram classificadas como “inimigas burguesas” e perderam terreno. A Federação Nacional de Mulheres da China, até então um dos mais importantes fóruns pela luta de pautas relacionadas às mulheres, cortou contato com grupos feministas independentes e se tornou cada vez mais dominada pelo Estado.

Mao morreu em 1976 e com ele, chegou ao fim a Revolução Cultural. A China passaria por um amplo período de reformas políticas e abertura econômica a partir de 1978, mas agora o problema era outro: virtualmente impedida de continuar militando, a primeira leva de feministas da revolução envelheceu e não conseguiu renovar os quadros.

“Algumas [feministas] retomaram seus cargos, mas não durou muito tempo, porque já estavam na idade de se aposentar. Então muitas daquelas mulheres que se filiaram em prol da libertação feminina, que escapavam de casamentos arranjados e abusos dos maridos já não tinham sucessoras”, relembra Zheng.

A professora afirma ainda que as reformas econômicas e o abandono parcial da economia planificada importou para a China as desigualdades de gênero próprias do capitalismo, criando disparidades salariais e promovendo homens, em vez de mulheres, a cargos de liderança. Tudo isso, explica ela, impacta na baixa representatividade feminina nas esferas de poder, uma situação que se tornou mais complicada sob o governo Xi.

“Xi foi o primeiro líder do partido que se atreveu a dizer que ‘o papel das mulheres na família é muito importante, é responsabilidade da mulher cuidar dos velhos e da família’. Nenhum líder comunista anterior, não importa o quão machista e patriarcal fosse, ousou fazer um discurso tão abertamente sexista. Porque eles sabiam que isso era politicamente incorreto”, pontua, mencionando que textos do partido têm reforçado “todas aquelas normas de gênero de Confúcio, que já têm mais de mil anos e enfatizam o papel da esposa e mãe virtuosa”.

Para Melissa Cambuhy, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), “estar no socialismo não significa superar contradições de gênero e raça”. Ela afirma que as mulheres foram centrais para a revolução chinesa, mas “só a luta política conquistará mudanças, porque a priori o poder continua com os homens”.

“Xi continua sendo homem, a despeito de ser líder, a despeito do socialismo. Existe algo de idealizado do que viria a ser o socialismo, como se fosse um paraíso, e isso é falso. O socialismo é um processo histórico em que a luta de classes, tanto contra bilionários como também no que se refere ao gênero e ao poder político, continua.”