Com busca por ‘prosperidade comum’, regulação econômica e desigualdade estão na mira de Xi Jinping

É quase um ritual. Entre o fim de julho e o início de agosto, líderes chineses somem da mídia e não são vistos em público. Grandes eventos, inspeções rotineiras a fábricas e empreendimentos e até as circulares publicadas nos jornais do partido, tudo cessa. 

Da agitada Pequim, a elite política comunista se desloca para Beidaihe, cidade-resort cerca de 330 km a leste da capital. Desses encontros já saíram decisões de importância histórica, o que faz sinólogos e jornalistas ficarem de sobreaviso, à espera do que virá.

Neste ano, o líder chinês, Xi Jinping, não demorou a sinalizar indícios de qual tinha sido a prioridade: a ênfase na busca da chamada “prosperidade comum”. Enquanto limusines com vidros escurecidos, policiais à paisana e cães farejadores circulavam pela cidade litorânea, o dirigente deixava o resort com o discurso pronto.

A tradição dessas cúpulas remonta ao século passado. Foi em Beidaihe que Mao Tsé-tung decidiu atacar a ilha Kinmen, controlada pelos nacionalistas, no episódio que desencadeou a Segunda Crise do Estreito de Taiwan, em 1958. O lugar também foi palco das discussões do Grande Salto Adiante —desastroso plano desenvolvimentista do fim dos anos 1950, responsável pela morte de dezenas de milhões de chineses— e das campanhas de repressão de Deng Xiaoping em 1983, destinadas a conter inúmeros episódios de violência pós-Revolução Cultural

Em 2021, o que saiu de lá foram essas duas palavras —ainda que elas já tivessem sido citadas antes; de acordo com a Bloomberg, o conceito apareceu ao menos 65 vezes em discursos neste ano. No último dia 17, Xi usou uma reunião da Comissão Central de Assuntos Financeiros e Econômicos para se dedicar a elas.

“A prosperidade comum é um requisito essencial do socialismo e uma característica-chave da modernização ao estilo chinês”, disse. “A prosperidade comum é a riqueza compartilhada por todos, tanto em termos materiais quanto culturais, e deve ser avançada passo a passo.”

Embora não signifique uma renúncia às regras do capitalismo, a política é um passo atrás no que o país vem fazendo desde que começou a se abrir, em 1978. À época, diante de uma economia destroçada e da miséria geral, Deng anunciou a intenção de deixar que “alguns fiquem ricos primeiro”, assumindo uma tolerância à desigualdade criticada pelo comunismo em prol do enriquecimento nacional. Deu certo, mas gerou uma grande distorção: a disparidade entre o topo e a base da pirâmide de renda.

Referências à prosperidade comum remontam ao governo Mao, ainda na fundação da república comunista, e se tornaram o centro da agenda política chinesa a partir de 2006, na era Hu Jintao. 

Em março daquele ano, o Congresso Nacional aprovou o 11º Plano Quinquenal –desenhado para prever as prioridades do Estado chinês–, introduzindo políticas inéditas no léxico chinês ao enfatizar que “crescimento econômico não é equivalente a desenvolvimento econômico”. Após o avanço observado no início do milênio, o documento clamava por “estabilidade em vez de rapidez” e lançava as bases de medidas que colocassem “as pessoas em primeiro lugar”.

Pesquisadora do conceito há quase duas décadas, a diretora do Departamento de Estudos Asiático-Americanos da Universidade da Califórnia, Cindy Fan, diz que, ao deixar que algumas pessoas ficassem ricas primeiro, Deng foi pragmático. “No contexto do final dos anos 1970 e início dos 1980, a China ainda era pobre, e a economia estava tão restrita que sua abordagem abriu as portas para que os mecanismos de mercado começassem a operar”, conta. Porém, conforme o país crescia, a desigualdade também avançava.

“É amplamente reconhecido que na China o acesso a educação, saúde e outros serviços básicos é altamente desigual. Rede de segurança social, planos de aposentadoria e seguridade social não estão bem estabelecidos. No governo de Xi, o tema se tornou urgente.”

O problema pode ser visto em números. No índice Gini, que mede a desigualdade em uma escala de 0 a 1, em que 0 significa igualdade de ganhos, a China marcou 0,46 em 2020, segundo o Banco Mundial. O resultado a coloca em situação pior que nações como Etiópia e Sudão. Burocratas e líderes do partido defendem há vários anos que, se o número não se aproximar de 0,40, há risco de convulsão social.

Para Fan, há espaço para diminuir essa lacuna entre ricos e pobres, e a China já se provou capaz de retirar milhões de pessoas da miséria extrema. Ela diz acreditar, contudo, que ainda que não queira matar o empreendedorismo ou redesenhar o chamado “socialismo de mercado” (sistema híbrido chinês que combina a estrutura política socialista com dinâmicas econômicas do capitalismo), Xi incentivará uma regulação maior em setores da economia.

“Comunicações oficiais têm mencionado com frequência a necessidade de aumentar o tamanho do grupo de renda média. Não parece que esses movimentos sejam antiempreendedorismo ou anti-investimento estrangeiro, mas está claro que o governo chinês quer impor mais regulamentações e usar ferramentas para melhorar a distribuição de renda”, diz.

Sob a bandeira da prosperidade comum, complementa ela, “é provável que o governo torne serviços como saúde mais acessíveis e baratos para a população rural, migrantes rurais e pessoas pobres nos centros urbanos”.

A especialista diz que, da forma como vem sendo mencionado por Xi, o termo abarca muitos setores e pode ser usado tanto para conter a desigualdade quanto para alcançar objetivos estratégicos essenciais ao Estado.

“Regulamentações mais pesadas das grandes empresas de tecnologia podem reduzir seu monopólio do mercado e ajudar a resolver os problemas de segurança cibernética. Exigir que o setor de educação privado não tenha fins lucrativos ajuda a reduzir a desigualdade e pode impulsionar as escolas públicas e reduzir a pressão sobre as crianças”, compara.

Para afastar rusgas com as políticas estatais, essas mesmas empresas que podem ser alvo de regulações já se adiantaram. Algumas das maiores companhias privadas nacionais, como a Tencent e a Pinduoduo, anunciaram investimentos de R$ 80,5 bilhões e R$ 8 bilhões, respectivamente, em um fundo de prosperidade comum e em desenvolvimento agrícola.

“A médio prazo, os empresários chineses provavelmente seriam mais cautelosos em termos de conquistar uma fatia muito grande do mercado e provavelmente adotariam mais ativamente a responsabilidade social corporativa como parte de seu plano e estratégia de negócios. Ela ganhou força na China no final dos anos 2000, mas o foco na prosperidade comum aceleraria ainda mais sua integração com o empreendedorismo, especialmente em grandes corporações.”

Erramos: A reportagem afirmou incorretamente que, caso o índice Gini, que mede desigualdade, se aproxime de 0,40, haveria risco de convulsão social na China, na visão de burocratas e líderes do Partido Comunista Chinês. Na verdade, o risco, segundo essa percepção, ocorre quando a cifra se afasta de 0,40.

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