Com submarinos nucleares, Austrália ‘tomou um lado’ nas disputas entre China e EUA, diz especialista
Professora na Universidade Monash e uma das maiores especialistas australianas em segurança marítima internacional, Maria Rublee passou as últimas semanas ocupada. Ela foi uma das primeiras acadêmicas do país a expressar críticas ao Aukus, o pacto militar firmado por Canberra com o Reino Unido e os Estados Unidos e que exasperou o governo comunista em Pequim.
Maior compromisso militar assinado entre os três países desde a Segunda Guerra, o Aukus vai permitir à Austrália montar sua primeira frota de submarinos a propulsão nuclear, além de prever a transferência de tecnologia quântica, inteligência artificial e técnicas de proteção cibernética.
O anúncio pegou diplomatas da região de surpresa. Além de sinalizar o que pode ser o início de uma grande marinha com propulsão nuclear global, as intenções dos países signatários são claras: conter a China. Os submarinos ampliarão o alcance australiano nas águas regionais, oferecendo um fator de dissuasão aos chineses, que ampliam a presença de sua Marinha com a construção de bases em ilhas artificiais.
À rede de TV americana CBS o premiê australiano, Scott Morrison, assumiu que o mar do sul da China, região reivindicada por Pequim e disputada por outros países parceiros dos Estados Unidos na região, será o foco das embarcações. “Estamos falando sobre as águas internacionais, de um Indo-Pacífico livre e aberto. O direito marítimo internacional importa para nós e para todos os países da região, assim como a capacidade de operar onde todos os países deveriam ser capazes de operar”, afirmou.
Para Rublee, a Austrália conseguiu sustentar por muitos anos o equilíbrio entre as parcerias comerciais com os chineses e a proximidade política e cultural com americanos e britânicos. O Aukus pode sinalizar o fim dessa postura. Na entrevista, a especialista detalha qual é o potencial perigo do pacto, não apenas para os chineses, mas também para os esforços na contenção de armamento nuclear mundial.
Folha: As reações mais firmes em relação a este acordo vieram de Pequim e de Paris, este último por motivos que discutiremos a seguir. Porém, muitos vizinhos no sudeste asiático, países que o Ocidente tenta seduzir para conter a China, também não gostaram do anúncio. Como o Aukus pode prejudicar a relação australiana com os vizinhos?
Maria Rublee: Existem diferentes tipos de vizinhos. Tem a Nova Zelândia, o vizinho mais próximo, tanto geograficamente, quanto culturalmente e diplomático. Eles já disseram que submarinos movidos a energia nuclear não serão permitidos em águas neozelandesas. Isso é um problema e significa que teremos problemas com questões como interoperabilidade. A Nova Zelândia não tem uma frota de submarinos, mas ainda assim, a cooperação naval entre os dois países será prejudicada.
Então você tem os países do sudeste asiático e eles não estão entusiasmados com isso por alguns motivos. Primeiro, eles argumentam que, muitas vezes, conflitos locais se tornam mais perigosos quando você envolve grandes potências, e é quase como se toda a região se tornasse um playground para esses países poderosos. Não há armas nucleares nesses submarinos, é uma usina nuclear dentro deles. Mesmo assim, houve comentários oficiais de preocupação de pessoas dentro do governo da Indonésia e do governo da Malásia.
Temos uma zona livre de armas nucleares nesta área, mas ela não proíbe os países com armas nucleares de transportá-las através desta zona. E, de fato, provavelmente veremos uma base de submarinos na costa oeste da Austrália que hospedará submarinos americanos e britânicos com armas nucleares.
F: Este acordo representa risco imediato para a China?
MR: Para a China, é a Austrália subitamente recebendo oito novos submarinos nucleares. Isso não dará aos australianos poder de negação marítima [termo militar que descreve tentativas de negar a capacidade do inimigo de usar o mar, sem necessariamente tentar controlar o mar para seu próprio uso], já que seriam necessários ao menos 12 submarinos para isso. Certamente, para a China não representará um problema maior do que os submarinos regulares que temos, mas é terá grande magnitude porque indica que a Austrália tomou uma decisão. Por muito tempo, a Austrália viveu um dilema do tipo “a gente vai se juntar à China, nosso parceiro econômico? Ou estaremos com os EUA, parceiro cultural e diplomático?”. Estamos claramente nos movendo em direção ao lado ocidental.
Para os chineses é uma grande preocupação, porque eles se veem como uma grande potência em crescimento e não querem um convite dourado para os Estados Unidos virem para o que eles veem como seu quintal. Além disso, estaremos recebendo também os britânicos e um parlamentar britânico do Comitê de Relações Exteriores já tuitou que “isso [o Aukus] nos dá uma doca permanente para nossos barcos na área”. No contexto do mar do Sul da China, isso significa dizer a Pequim que vamos nos envolver mais com o Ocidente, não menos.
F: A senhora mencionou o fato da Austrália estar em uma zona não nuclear, com a China acusando Canberra de violar compromissos assumidos em tratados de não proliferação. As três partes do Aukus já esclareceram que os submarinos apenas movidos por fissão nuclear, mas não carregarão mísseis balísticos. Essa garantia será o suficiente para acalmar os nervos em Pequim? Pode haver uma corrida armamentista nuclear na região?
MR: A Austrália certamente não infringirá o tratado de não proliferação, não com um submarino de propulsão nuclear sobre o qual temos direito previsto no texto. Dito isso, temos perguntas sobre as intenções da Austrália no futuro. A grande questão aqui é quem fornecerá o urânio altamente enriquecido que alimenta esses submarinos nucleares. Dentro deles você tem uma mini usina de energia nuclear que não precisa ser reabastecida durante a vida útil da embarcação.
Mas se a Austrália disser “queremos fornecer o urânio altamente enriquecido que vai para esses submarinos nucleares”, então não apenas a China estará em alerta, mas países em todo o mundo porque se você tem a capacidade de enriquecer urânio e o poder de fabricar armas nucleares. É o mesmo equipamento, você apenas o executa por mais tempo. Realmente, seria uma coisa terrível fazer isso, não queremos ver a disseminação de instalações de enriquecimento ao redor do mundo que tornariam mais difícil a redução de armas nucleares.
F: Os franceses ficaram irritados com a decisão, já que tinham assinado um acordo para construir 12 submarinos encomendados por Canberra. É possível que a Austrália esteja se afastando dos parceiros da União Europeia nessa disputa geopolítica com a China, passando a depender mais de seus parceiros militares tradicionais como os Estados Unidos e o Reino Unido?
MR: Bem, essa é certamente a direção que o atual poderoso primeiro-ministro traçou. Absolutamente. Contudo, do ponto de vista doméstico, não creio que haja vontade de abandonar a Europa para se alinhar inteiramente com os Estados Unidos. Há um compromisso muito grande com os americanos, mas ele também existe para a Europa. É muito lamentável a maneira como isso foi tratado com os franceses e ficou claro que eles foram avisados de última hora. No entanto, o contrato francês nunca foi um bom negócio porque eles estavam pegando um submarino com propulsão nuclear e o redesenhando, o que custaria muito dinheiro.
F: No curto prazo, como a senhora vê a resposta chinesa ao Aukus? Pequim reclamará apenas pelos canais diplomáticos ou embarcações chinesas podem vir a realizar exercícios militares em águas internacionais próximas à Austrália como retaliação?
MR: É muito difícil saber o que os chineses farão. A China se tornou muito mais agressiva ultimamente nos últimos dois anos, mas duvido que eles façam algo. No que tange a exercícios militares, tudo o que vai conseguirão se seguirem esse caminho é influenciar a opinião pública. Se os chineses quiserem que o Aukus prospere, basta provocar a Austrália próximo de suas águas porque isso basicamente fará a população doméstica dizer “ok, a China está sendo superagressiva, agora realmente precisamos do Aukus”. Meu palpite é que eles sabem disso e haverá muita conversa, mas não acho que irão muito além disso.
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