Epopeia de exames e protocolos rígidos mostram política de Covid zero na China
Desembarcar na China durante a pandemia de coronavírus parece uma distopia. Enquanto o resto do mundo começa a reabrir suas fronteiras para viagens não essenciais, os aeroportos chineses dão uma pista do quão preocupado o governo continua com a Covid-19: funcionários com trajes de proteção, fluxo de passageiros internacionais controlado por cordas e um procedimento cuidadoso que registra o celular de cada viajante. Foi assim que descobri um caso da doença no meu voo.
Saí de Guarulhos no último dia 6 de novembro rumo a Shanghai, mas a viagem para a China começa muito antes de entrar no avião. Virtualmente fechado desde o início de 2020, o país desenvolveu um complexo sistema de monitoramento pandêmico, essencial para a contenção da doença na bolha sanitária criada por Pequim.
Antes de sair do Brasil, é necessário enviar em uma plataforma do governo os resultados não só de um teste PCR, como já é praxe para diversas viagens internacionais, mas também de um exame de anticorpos IgM. A imunoglobulina é a primeira resposta do sistema imunológico após a exposição ao coronavírus e pode levar meses para desaparecer do organismo. Na prática, a exigência fez com que eu me isolasse semanas antes da viagem de fato, já que uma infecção, mesmo curada, impediria-me de embarcar.
Apenas voos diretos ou com uma escala são permitidos. E, na parada, mais uma exigência: os exames PCR e IgM têm de ser refeitos, e uma nova autorização para seguir viagem, solicitada. Poucos aeroportos no mundo têm centros de testagens conveniados com o consulado chinês local, e o preço dos testes supera facilmente a ordem de milhares de reais (parando em Zurique, como foi o meu caso, os exames custaram 340 francos, pouco mais de R$2300 com o IOF). Dadas as exigências, são poucos os assentos disponíveis, e as companhias aéreas que dispõem de voos com destino ao país vendem passagens a peso de ouro (para mim, algo na casa dos US$ 8 mil, cerca de R$ 44 mil).
Autorizado o embarque, cada passageiro recebe dois QR codes: o de alfândega e o de saúde. Os quadradinhos são escaneados dezenas de vezes, e o sistema de imigração do governo registra quem era e onde estava sentado cada viajante. Ao sair do avião, todos são encaminhados para uma nova rodada de testes PCR (coletado com material do nariz e da garganta). Concluído o procedimento, os passageiros são encaminhados a ônibus em grupos de 25 pessoas e enviados aleatoriamente a hotéis de quarentena, pagos com recursos próprios e de onde não poderão sair por ao menos 14 dias.
Dois dias depois de chegar à China, eu ainda sofria com o jet lag e cochilava quando um funcionário do hotel para onde fui enviado ligou para o meu quarto. “Senhor, encontraram casos de Covid no seu voo para Shanghai. Verifique o seu código de saúde e se prepare para o PCR amanhã pela manhã.” O sistema de registro de viajantes confirmava: alguém sentado até três fileiras da minha poltrona recebeu o diagnóstico de Covid logo no primeiro dia de quarentena e, por isso, todos estariam submetidos a uma vigilância mais rigorosa.
“O que acontece agora?”, perguntei ao funcionário. Ele me respondeu dizendo que era preciso “esperar para ver”. Colegas que passaram pela mesma situação contaram que todos seriam testados e, se houvesse a confirmação de algum caso, o infectado seria levado para isolamento em um hospital e por lá ficaria por ao menos 21 dias. Todos os outros passageiros seriam monitorados, e a contagem da quarentena começaria do zero se alguém sentado do seu lado ou imediatamente à sua frente tanto no avião quanto no ônibus rumo ao hotel também recebesse um resultado positivo.
Na manhã seguinte, dois médicos cobertos dos pés à cabeça com trajes de proteção bateram na minha porta. Além de fazer o teste, fui orientado a assinar um termo em chinês que atestava ter sido informado do caso de Covid próximo a mim e no qual eu concordava com a minha nova rotina: checagens de temperatura todos os dias depois do café da manhã e do almoço e uma ligação no fim do dia para saber como estava a minha saúde.
Eu ainda seria submetido a novos testes no décimo e no 13º dia da quarentena, e só então seria liberado para fazer uma terceira semana de quarentena menos restritiva em outro hotel. Para esse período é necessário um novo código de saúde, desta vez emitido pela prefeitura da cidade e vinculado a um número de telefone local. O aplicativo rastreia a localização de todos os usuários 24 horas por dia e pode ficar amarelo ou vermelho caso haja contato próximo com outro caso de Covid nesse meio tempo.
Meu exame teve resultado negativo. Quando comentei com a médica que checava minha temperatura diariamente sobre a precisão do sistema, ela respondeu: “Não podemos deixar passar nenhum caso.”
Covid Zero
O rigoroso rastreio de contatos e a enorme burocracia para os poucos estrangeiros autorizados a entrar no país colocam os chineses em uma categoria à parte no combate à Covid. Embora tenha protestado quando o então presidente dos EUA Donald Trump decidiu banir voos da China logo nos primeiros meses desde o surto em Wuhan, Pequim seguiu a tendência mundial na sequência e fechou as fronteiras por tempo indeterminado. Quase dois anos depois, nada indica disposição para reverter a decisão em um futuro próximo.
Em setembro, a metrópole Guangzhou, no sul do país, inaugurou um enorme centro de quarentena para viajantes internacionais. Ao custo de R$ 1,4 bilhão, a estrutura ocupa uma área de 250 mil metros quadrados, tem capacidade para receber até 5.074 viajantes e conta com um avançado sistema de inteligência artificial capaz de medir constantemente a temperatura dos quarentenados, além de robôs para a entrega de comida e de monitores para telemedicina. Um investimento que só se justifica se planejado para ser duradouro.
A preocupação é mais que sanitária. Quando conseguiu controlar o surto da doença em Wuhan, a China logo viu disparar os casos de Covid mundo afora. Fechada, usou o sucesso no combate à pandemia para fortalecer a credibilidade do governo enquanto a mídia estatal descrevia cenas apocalípticas nos hospitais de Brasil, Índia e EUA. O resultado na moral coletiva foi imediato, e a população se recusa a conviver com o vírus.
Reverter os efeitos da propaganda oficial não é tarefa simples, e o governo não tem pressa. No radar, as preocupações mais imediatas estão em garantir a realização dos Jogos Olímpicos de Inverno em fevereiro e assegurar que Xi Jinping assuma um terceiro mandato de cinco anos em novembro de 2022 sem crises domésticas para lidar ao mesmo tempo.
Isso não significa que o Partido Comunista não esteja atento à necessidade de reabrir o país. Em agosto, o epidemiologista Zhong Nanshan, um dos principais conselheiros do governo na resposta à Covid e famoso por ter ajudado a combater a crise da Sars em 2003, destacou as condições necessárias para que Pequim considere flexibilizar a entrada de estrangeiros. Em uma rara declaração pública, disse que o governo só vai considerar a reabertura quando o país atingir 85% da população totalmente vacinada, “a imunização avançar internacionalmente e a transmissão no exterior atingir níveis relativamente baixos”.
Saudade de casa
Enquanto a flexibilização não ocorre, brasileiros que vivem na China convivem com ansiedade, preocupação e saudade da família. É o caso da guia turística Dani Tassy. Na China desde 2014, ela estava viajando com um grupo de brasileiros quando o surto de Sars-Cov-2 estourou em Wuhan. Tassy tinha esperanças de que a situação se normalizasse em poucos meses e, ao contrário de outros amigos estrangeiros, resolveu não sair.
O impacto da decisão foi emocional e financeiro, já que o número de clientes desabou após o início das restrições. Ela afirma esperar uma melhora nas condições sanitárias para que as fronteiras reabram o quanto antes, mas já pensa em uma data limite.
“Sair da China para quem tem uma vida aqui é arriscado porque não sabemos quando ou se poderemos voltar. Passei por momentos de grande ansiedade, de me questionar se valeu a pena ter ficado. Meu irmão se casou nesse meio tempo, e eu perdi uma prima para a Covid no Brasil. Penso que, se daqui a um ano as coisas não mudarem, vou me arriscar e voltar”, diz ela, que desde janeiro de 2019 não vê a mãe, que vive no interior de São Paulo.
Se para quem já está no país a decisão de permanecer fica cada vez mais custosa, quem precisa entrar também pondera prós e contras. O analista ambiental Pedro Campany, que chegou à China com a mulher e o filho de 11 anos em março para trabalhar, afirma que teve de pensar bastante antes de aceitar a vaga.
“Foi um projeto de família, e no final escolhemos o que seria melhor não só para nós, mas para o nosso filho. Mas a distância complica. Minha mãe sempre me pergunta se vou ficar aqui de vez e quando vou visitar o Brasil. Na semana passada a família se reuniu para um casamento, fizeram uma chamada de vídeo e foi difícil. Não é a mesma coisa.”
E de volta ao meu quarto de quarentena
Teste negativo, posso respirar aliviado por hora. A primeira fase da minha quarentena termina na próxima segunda-feira (22), mas o processo ainda está longe de acabar. Daqui, sigo para um novo hotel, onde ficarei de “observação” por mais sete dias. Embora possa circular em Shanghai, a recomendação é fazer o estritamente essencial nesse período.
Depois de mais outros dois testes de Covid, poderei então embarcar para Pequim, onde mais uma semana de observação me espera. O cuidado extremo, talvez até exagerado, prova: quando se trata da pandemia, a China não está disposta a pagar para ver.
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