China, Terra do Meio https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br Reportagens, análises geopolíticas e notícias de um dos mais importantes países do mundo: a China Fri, 19 Nov 2021 15:36:10 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Epopeia de exames e protocolos rígidos mostram política de Covid zero na China https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/11/19/epopeia-de-exames-e-protocolos-rigidos-revela-politica-de-covid-zero-na-china/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/11/19/epopeia-de-exames-e-protocolos-rigidos-revela-politica-de-covid-zero-na-china/#respond Fri, 19 Nov 2021 15:05:31 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/20211108_183730-300x215.jpg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=315 Desembarcar na China durante a pandemia de coronavírus parece uma distopia. Enquanto o resto do mundo começa a reabrir suas fronteiras para viagens não essenciais, os aeroportos chineses dão uma pista do quão preocupado o governo continua com a Covid-19: funcionários com trajes de proteção, fluxo de passageiros internacionais controlado por cordas e um procedimento cuidadoso que registra o celular de cada viajante. Foi assim que descobri um caso da doença no meu voo.

Saí de Guarulhos no último dia 6 de novembro rumo a Shanghai, mas a viagem para a China começa muito antes de entrar no avião. Virtualmente fechado desde o início de 2020, o país desenvolveu um complexo sistema de monitoramento pandêmico, essencial para a contenção da doença na bolha sanitária criada por Pequim.

Antes de sair do Brasil, é necessário enviar em uma plataforma do governo os resultados não só de um teste PCR, como já é praxe para diversas viagens internacionais, mas também de um exame de anticorpos IgM. A imunoglobulina é a primeira resposta do sistema imunológico após a exposição ao coronavírus e pode levar meses para desaparecer do organismo. Na prática, a exigência fez com que eu me isolasse semanas antes da viagem de fato, já que uma infecção, mesmo curada, impediria-me de embarcar.

Apenas voos diretos ou com uma escala são permitidos. E, na parada, mais uma exigência: os exames PCR e IgM têm de ser refeitos, e uma nova autorização para seguir viagem, solicitada. Poucos aeroportos no mundo têm centros de testagens conveniados com o consulado chinês local, e o preço dos testes supera facilmente a ordem de milhares de reais (parando em Zurique, como foi o meu caso, os exames custaram 340 francos, pouco mais de R$2300 com o IOF). Dadas as exigências, são poucos os assentos disponíveis, e as companhias aéreas que dispõem de voos com destino ao país vendem passagens a peso de ouro (para mim, algo na casa dos US$ 8 mil, cerca de R$ 44 mil).

Autorizado o embarque, cada passageiro recebe dois QR codes: o de alfândega e o de saúde. Os quadradinhos são escaneados dezenas de vezes, e o sistema de imigração do governo registra quem era e onde estava sentado cada viajante. Ao sair do avião, todos são encaminhados para uma nova rodada de testes PCR (coletado com material do nariz e da garganta). Concluído o procedimento, os passageiros são encaminhados a ônibus em grupos de 25 pessoas e enviados aleatoriamente a hotéis de quarentena, pagos com recursos próprios e de onde não poderão sair por ao menos 14 dias.

Dois dias depois de chegar à China, eu ainda sofria com o jet lag e cochilava quando um funcionário do hotel para onde fui enviado ligou para o meu quarto. “Senhor, encontraram casos de Covid no seu voo para Shanghai. Verifique o seu código de saúde e se prepare para o PCR amanhã pela manhã.” O sistema de registro de viajantes confirmava: alguém sentado até três fileiras da minha poltrona recebeu o diagnóstico de Covid logo no primeiro dia de quarentena e, por isso, todos estariam submetidos a uma vigilância mais rigorosa.

“O que acontece agora?”, perguntei ao funcionário. Ele me respondeu dizendo que era preciso “esperar para ver”. Colegas que passaram pela mesma situação contaram que todos seriam testados e, se houvesse a confirmação de algum caso, o infectado seria levado para isolamento em um hospital e por lá ficaria por ao menos 21 dias. Todos os outros passageiros seriam monitorados, e a contagem da quarentena começaria do zero se alguém sentado do seu lado ou imediatamente à sua frente tanto no avião quanto no ônibus rumo ao hotel também recebesse um resultado positivo.

Aplicativo do Conselho de Estado muda de cor quando um caso é confirmado no voo Reprodução/Arquivo pessoal

Na manhã seguinte, dois médicos cobertos dos pés à cabeça com trajes de proteção bateram na minha porta. Além de fazer o teste, fui orientado a assinar um termo em chinês que atestava ter sido informado do caso de Covid próximo a mim e no qual eu concordava com a minha nova rotina: checagens de temperatura todos os dias depois do café da manhã e do almoço e uma ligação no fim do dia para saber como estava a minha saúde.

Eu ainda seria submetido a novos testes no décimo e no 13º dia da quarentena, e só então seria liberado para fazer uma terceira semana de quarentena menos restritiva em outro hotel. Para esse período é necessário um novo código de saúde, desta vez emitido pela prefeitura da cidade e vinculado a um número de telefone local. O aplicativo rastreia a localização de todos os usuários 24 horas por dia e pode ficar amarelo ou vermelho caso haja contato próximo com outro caso de Covid nesse meio tempo.

Meu exame teve resultado negativo. Quando comentei com a médica que checava minha temperatura diariamente sobre a precisão do sistema, ela respondeu: “Não podemos deixar passar nenhum caso.”

Covid Zero

O rigoroso rastreio de contatos e a enorme burocracia para os poucos estrangeiros autorizados a entrar no país colocam os chineses em uma categoria à parte no combate à Covid. Embora tenha protestado quando o então presidente dos EUA Donald Trump decidiu banir voos da China logo nos primeiros meses desde o surto em Wuhan, Pequim seguiu a tendência mundial na sequência e fechou as fronteiras por tempo indeterminado. Quase dois anos depois, nada indica disposição para reverter a decisão em um futuro próximo.

Em setembro, a metrópole Guangzhou, no sul do país, inaugurou um enorme centro de quarentena para viajantes internacionais. Ao custo de R$ 1,4 bilhão, a estrutura ocupa uma área de 250 mil metros quadrados, tem capacidade para receber até 5.074 viajantes e conta com um avançado sistema de inteligência artificial capaz de medir constantemente a temperatura dos quarentenados, além de robôs para a entrega de comida e de monitores para telemedicina. Um investimento que só se justifica se planejado para ser duradouro.

A preocupação é mais que sanitária. Quando conseguiu controlar o surto da doença em Wuhan, a China logo viu disparar os casos de Covid mundo afora. Fechada, usou o sucesso no combate à pandemia para fortalecer a credibilidade do governo enquanto a mídia estatal descrevia cenas apocalípticas nos hospitais de Brasil, Índia e EUA. O resultado na moral coletiva foi imediato, e a população se recusa a conviver com o vírus.

Reverter os efeitos da propaganda oficial não é tarefa simples, e o governo não tem pressa. No radar, as preocupações mais imediatas estão em garantir a realização dos Jogos Olímpicos de Inverno em fevereiro e assegurar que Xi Jinping assuma um terceiro mandato de cinco anos em novembro de 2022 sem crises domésticas para lidar ao mesmo tempo.

Isso não significa que o Partido Comunista não esteja atento à necessidade de reabrir o país. Em agosto, o epidemiologista Zhong Nanshan, um dos principais conselheiros do governo na resposta à Covid e famoso por ter ajudado a combater a crise da Sars em 2003, destacou as condições necessárias para que Pequim considere flexibilizar a entrada de estrangeiros. Em uma rara declaração pública, disse que o governo só vai considerar a reabertura quando o país atingir 85% da população totalmente vacinada, “a imunização avançar internacionalmente e a transmissão no exterior atingir níveis relativamente baixos”.

Saudade de casa

Enquanto a flexibilização não ocorre, brasileiros que vivem na China convivem com ansiedade, preocupação e saudade da família. É o caso da guia turística Dani Tassy. Na China desde 2014, ela estava viajando com um grupo de brasileiros quando o surto de Sars-Cov-2 estourou em Wuhan. Tassy tinha esperanças de que a situação se normalizasse em poucos meses e, ao contrário de outros amigos estrangeiros, resolveu não sair.

O impacto da decisão foi emocional e financeiro, já que o número de clientes desabou após o início das restrições. Ela afirma esperar uma melhora nas condições sanitárias para que as fronteiras reabram o quanto antes, mas já pensa em uma data limite.

“Sair da China para quem tem uma vida aqui é arriscado porque não sabemos quando ou se poderemos voltar. Passei por momentos de grande ansiedade, de me questionar se valeu a pena ter ficado. Meu irmão se casou nesse meio tempo, e eu perdi uma prima para a Covid no Brasil. Penso que, se daqui a um ano as coisas não mudarem, vou me arriscar e voltar”, diz ela, que desde janeiro de 2019 não vê a mãe, que vive no interior de São Paulo.

Dani Tassy trabalha como guia na China e faz planos de voltar ao Brasil em 2022 caso as fronteiras não reabram Dani Tassy/Arquivo pessoal

Se para quem já está no país a decisão de permanecer fica cada vez mais custosa, quem precisa entrar também pondera prós e contras. O analista ambiental Pedro Campany, que chegou à China com a mulher e o filho de 11 anos em março para trabalhar, afirma que teve de pensar bastante antes de aceitar a vaga.

“Foi um projeto de família, e no final escolhemos o que seria melhor não só para nós, mas para o nosso filho. Mas a distância complica. Minha mãe sempre me pergunta se vou ficar aqui de vez e quando vou visitar o Brasil. Na semana passada a família se reuniu para um casamento, fizeram uma chamada de vídeo e foi difícil. Não é a mesma coisa.”

E de volta ao meu quarto de quarentena

Teste negativo, posso respirar aliviado por hora. A primeira fase da minha quarentena termina na próxima segunda-feira (22), mas o processo ainda está longe de acabar. Daqui, sigo para um novo hotel, onde ficarei de “observação” por mais sete dias. Embora possa circular em Shanghai, a recomendação é fazer o estritamente essencial nesse período.

Depois de mais outros dois testes de Covid, poderei então embarcar para Pequim, onde mais uma semana de observação me espera. O cuidado extremo, talvez até exagerado, prova: quando se trata da pandemia, a China não está disposta a pagar para ver.

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Quem é Wang Yaping, chinesa que vai fazer história no espaço https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/10/18/quem-e-wang-yaping-chinesa-que-vai-fazer-historia-no-espaco/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/10/18/quem-e-wang-yaping-chinesa-que-vai-fazer-historia-no-espaco/#respond Mon, 18 Oct 2021 20:00:46 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/8864d5a3bd2fa050697659dd7cb7d714227fa63385ddb2b1d2c0fc4cf77f83dd_6168c2b1bb7d9-300x215.jpeg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=295 Quando a espaçonave Shenzhou-13 decolou no último sábado (16) do Centro de Lançamento de Satélites de Jiuquan com destino à estação espacial Tiangong, ela levava mais que suprimentos e ferramentas para tornar o módulo chinês plenamente operacional. 

A bordo, a missão carregava um pedaço da história: Wang Yaping, a segunda mulher taikonauta (como são chamados os astronautas chineses) a deixar a Terra e a primeira com a missão de realizar uma caminhada espacial.

Discreta e pouco afeita a entrevistas, a militar de 41 anos tem uma formação incomum. Capitã da Força Aérea Chinesa, ela se juntou à Academia de Voo em 1997 e ganhou notoriedade ao participar da megaoperação de resgate durante o terremoto de Wenchuan, em maio de 2008, até hoje uma das maiores tragédias da história da China, com um saldo de mais de 69 mil mortos e 40 milhões de pessoas afetadas. 

Concluída a formação militar, decidiu se dedicar a outras áreas do conhecimento. Cursou mestrado em jornalismo na Universidade de Pequim e atualmente é candidata ao título de doutora na mesma instituição, desta vez estudando psicologia.

Em 2012, quase se tornou a primeira mulher chinesa no espaço, na missão Shenzhou-9. 

Acabou ficando na reserva, com a colega Liu Yang assumindo o posto. Wang só deixaria a Terra no ano seguinte e, a bordo da Shenzhou-10, estamparia manchetes em todo o país ao lecionar como professora convidada de ciências direto do espaço para uma escola primária. 

De lá, ela explicou o conceito de peso e massa em gravidade zero a várias crianças, em uma transmissão reproduzida por diversos canais de televisão.

As missões vieram a um grande custo pessoal. Casada desde 2006 com o piloto de avião Zhao Peng, Wang contou em uma entrevista que pretendia ser mãe quando foi convidada a integrar a equipe de taikonautas. 

Devido à bateria de exames e ao treinamento pesado, ela precisou adiar o sonho, para desgosto do marido. Quando voltou à Terra como heroína nacional, sua primeira reação foi de culpa.

“Posso ser uma taikonauta exemplar, mas não sou uma esposa qualificada. Outras mulheres podem acompanhar seus maridos em passeios, podem ir ao cinema. Isso é um luxo para mim. [Agora que voltei], espero poder sair para jantar com Zhao”, afirmou ela à imprensa logo depois de pousar.

A filha só nasceu em 2016. Com a criança, Wang cumpriu também uma exigência não oficial para todas as mulheres que desejam seguir carreira como taikonautas: serem mães. 

Responsável por selecionar os militares para as missões especiais, a equipe do Centro de Medicina Aeroespacial Clínica do Exército chinês argumenta que ainda não há evidências sobre como a exposição à radiação espacial afetam a fisiologia feminina. Assim, mulheres com filhos ganham prioridade para evitar que as missões interfiram no planejamento familiar das profissionais.

Missão mais longa da história

Pouco antes de decolar no fim de semana, Wang fez um post cômico em seu perfil no WeChat (superapp chinês, espécie de híbrido de Facebook e WhatsApp): uma imagem de um bonequinho vestido com traje espacial e a legenda “viajando a trabalho por seis meses”. 

Além de divertido, o post faz referência a um recorde histórico. Se tudo correr bem, a Shenzhou-13 deve durar 183 dias, a mais longa missão tripulada da China até hoje.

“Viajando a trabalho por seis meses”, escreveu Wang no WeChat.

Junto com os colegas Zhai Zhigang, 55, e Ye Guangfu, 41, Wang tem a missão de terminar a construção da estação espacial, prevista para operar a partir do ano que vem e servir como alternativa à Estação Espacial Internacional, controlada por americanos e russos. 

Na lista de tarefas, uma caminhada espacial para a instalação de cabos na Tiangong. Considerada uma das mais arriscadas atividades no espaço, a caminhada também entrará na história como a primeira realizada por uma mulher chinesa.

Ao deixar a Terra, a capitã foi questionada sobre a responsabilidade de carregar tantos marcos para as chinesas. Categórica, respondeu que “o espaço não muda só porque você  é mulher”. Bem humorada, disse qual será a parte mais complicada da missão: “Minha filha quer que eu traga estrelas para ela e seus colegas quando eu voltar. Ela me fez prometer que traria um punhado para que ela dividisse com os amigos da escola”.

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Com submarinos nucleares, Austrália ‘tomou um lado’ nas disputas entre China e EUA, diz especialista https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/09/27/com-submarinos-nucleares-australia-tomou-um-lado-nas-disputas-entre-china-e-eua-diz-especialista/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/09/27/com-submarinos-nucleares-australia-tomou-um-lado-nas-disputas-entre-china-e-eua-diz-especialista/#respond Mon, 27 Sep 2021 21:05:56 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/4c39bdfbd17b1559b3bd09eac8547935cf40c8ae100cf2854777446928e02558_614b9ca29e806-300x215.jpeg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=279 Professora na Universidade Monash e uma das maiores especialistas australianas em segurança marítima internacional, Maria Rublee passou as últimas semanas ocupada. Ela foi uma das primeiras acadêmicas do país a expressar críticas ao Aukus, o pacto militar firmado por Canberra com o Reino Unido e os Estados Unidos e que exasperou o governo comunista em Pequim.

Maior compromisso militar assinado entre os três países desde a Segunda Guerra, o Aukus vai permitir à Austrália montar sua primeira frota de submarinos a propulsão nuclear, além de prever a transferência de tecnologia quântica, inteligência artificial e técnicas de proteção cibernética.

O anúncio pegou diplomatas da região de surpresa. Além de sinalizar o que pode ser o início de uma grande marinha com propulsão nuclear global, as intenções dos países signatários são claras: conter a China. Os submarinos ampliarão o alcance australiano nas águas regionais, oferecendo um fator de dissuasão aos chineses, que ampliam a presença de sua Marinha com a construção de bases em ilhas artificiais.

À rede de TV americana CBS o premiê australiano, Scott Morrison, assumiu que o mar do sul da China, região reivindicada por Pequim e disputada por outros países parceiros dos Estados Unidos na região, será o foco das embarcações. “Estamos falando sobre as águas internacionais, de um Indo-Pacífico livre e aberto. O direito marítimo internacional importa para nós e para todos os países da região, assim como a capacidade de operar onde todos os países deveriam ser capazes de operar”, afirmou.

Para Rublee, a Austrália conseguiu sustentar por muitos anos o equilíbrio entre as parcerias comerciais com os chineses e a proximidade política e cultural com americanos e britânicos. O Aukus pode sinalizar o fim dessa postura. Na entrevista, a especialista detalha qual é o potencial perigo do pacto, não apenas para os chineses, mas também para os esforços na contenção de armamento nuclear mundial.

Folha: As reações mais firmes em relação a este acordo vieram de Pequim e de Paris, este último por motivos que discutiremos a seguir. Porém, muitos vizinhos no sudeste asiático, países que o Ocidente tenta seduzir para conter a China, também não gostaram do anúncio. Como o Aukus pode prejudicar a relação australiana com os vizinhos?

Maria Rublee: Existem diferentes tipos de vizinhos. Tem a Nova Zelândia, o vizinho mais próximo, tanto geograficamente, quanto culturalmente e diplomático. Eles já disseram que submarinos movidos a energia nuclear não serão permitidos em águas neozelandesas. Isso é um problema e significa que teremos problemas com questões como interoperabilidade. A Nova Zelândia não tem uma frota de submarinos, mas ainda assim, a cooperação naval entre os dois países será prejudicada.

Então você tem os países do sudeste asiático e eles não estão entusiasmados com isso por alguns motivos. Primeiro, eles argumentam que, muitas vezes, conflitos locais se tornam mais perigosos quando você envolve grandes potências, e é quase como se toda a região se tornasse um playground para esses países poderosos. Não há armas nucleares nesses submarinos, é uma usina nuclear dentro deles. Mesmo assim, houve comentários oficiais de preocupação de pessoas dentro do governo da Indonésia e do governo da Malásia.

Temos uma zona livre de armas nucleares nesta área, mas ela não proíbe os países com armas nucleares de transportá-las através desta zona. E, de fato, provavelmente veremos uma base de submarinos na costa oeste da Austrália que hospedará submarinos americanos e britânicos com armas nucleares.

F: Este acordo representa risco imediato para a China?

MR: Para a China, é a Austrália subitamente recebendo oito novos submarinos nucleares. Isso não dará aos australianos poder de negação marítima [termo militar que descreve tentativas de negar a capacidade do inimigo de usar o mar, sem necessariamente tentar controlar o mar para seu próprio uso], já que seriam necessários ao menos 12 submarinos para isso. Certamente, para a China não representará um problema maior do que os submarinos regulares que temos, mas é terá grande magnitude porque indica que a Austrália tomou uma decisão. Por muito tempo, a Austrália viveu um dilema do tipo “a gente vai se juntar à China, nosso parceiro econômico? Ou estaremos com os EUA, parceiro cultural e diplomático?”. Estamos claramente nos movendo em direção ao lado ocidental.

Para os chineses é uma grande preocupação, porque eles se veem como uma grande potência em crescimento e não querem um convite dourado para os Estados Unidos virem para o que eles veem como seu quintal. Além disso, estaremos recebendo também os britânicos e um parlamentar britânico do Comitê de Relações Exteriores já tuitou que “isso [o Aukus] nos dá uma doca permanente para nossos barcos na área”. No contexto do mar do Sul da China, isso significa dizer a Pequim que vamos nos envolver mais com o Ocidente, não menos.

F: A senhora mencionou o fato da Austrália estar em uma zona não nuclear, com a China acusando Canberra de violar compromissos assumidos em tratados de não proliferação. As três partes do Aukus já esclareceram que os submarinos apenas movidos por fissão nuclear, mas não carregarão mísseis balísticos. Essa garantia será o suficiente para acalmar os nervos em Pequim? Pode haver uma corrida armamentista nuclear na região?

MR: A Austrália certamente não infringirá o tratado de não proliferação, não com um submarino de propulsão nuclear sobre o qual temos direito previsto no texto. Dito isso, temos perguntas sobre as intenções da Austrália no futuro. A grande questão aqui é quem fornecerá o urânio altamente enriquecido que alimenta esses submarinos nucleares. Dentro deles você tem uma mini usina de energia nuclear que não precisa ser reabastecida durante a vida útil da embarcação.

Mas se a Austrália disser “queremos fornecer o urânio altamente enriquecido que vai para esses submarinos nucleares”, então não apenas a China estará em alerta, mas países em todo o mundo porque se você tem a capacidade de enriquecer urânio e o poder de fabricar armas nucleares. É o mesmo equipamento, você apenas o executa por mais tempo. Realmente, seria uma coisa terrível fazer isso, não queremos ver a disseminação de instalações de enriquecimento ao redor do mundo que tornariam mais difícil a redução de armas nucleares.

F: Os franceses ficaram irritados com a decisão, já que tinham assinado um acordo para construir 12 submarinos encomendados por Canberra. É possível que a Austrália esteja se afastando dos parceiros da União Europeia nessa disputa geopolítica com a China, passando a depender mais de seus parceiros militares tradicionais como os Estados Unidos e o Reino Unido?

MR: Bem, essa é certamente a direção que o atual poderoso primeiro-ministro traçou. Absolutamente. Contudo, do ponto de vista doméstico, não creio que haja vontade de abandonar a Europa para se alinhar inteiramente com os Estados Unidos. Há um compromisso muito grande com os americanos, mas ele também existe para a Europa. É muito lamentável a maneira como isso foi tratado com os franceses e ficou claro que eles foram avisados de última hora. No entanto, o contrato francês nunca foi um bom negócio porque eles estavam pegando um submarino com propulsão nuclear e o redesenhando, o que custaria muito dinheiro.

F: No curto prazo, como a senhora vê a resposta chinesa ao Aukus? Pequim reclamará apenas pelos canais diplomáticos ou embarcações chinesas podem vir a realizar exercícios militares em águas internacionais próximas à Austrália como retaliação?

MR: É muito difícil saber o que os chineses farão. A China se tornou muito mais agressiva ultimamente nos últimos dois anos, mas duvido que eles façam algo. No que tange a exercícios militares, tudo o que vai conseguirão se seguirem esse caminho é influenciar a opinião pública. Se os chineses quiserem que o Aukus prospere, basta provocar a Austrália próximo de suas águas porque isso basicamente fará a população doméstica dizer “ok, a China está sendo superagressiva, agora realmente precisamos do Aukus”. Meu palpite é que eles sabem disso e haverá muita conversa, mas não acho que irão muito além disso.

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‘11 de Setembro chinês’ moldou combate de Pequim ao terror https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/09/09/11-de-setembro-chines-moldou-combate-de-pequim-ao-terror/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/09/09/11-de-setembro-chines-moldou-combate-de-pequim-ao-terror/#respond Thu, 09 Sep 2021 18:57:14 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/d74e7eacfc8d9527eb6e9f3406950b9d06a5d148db757003c2ebeac1bba583ff_5ae2d17dbc0fc-300x215.jpeg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=267 Era noite de sábado, 1º de março de 2014 em Kunming, capital da província de Yunnan, quando um grupo de seis homens e duas mulheres invadiu a estação ferroviária da cidade

Com os rostos parcialmente cobertos, eles sacaram facas e espadas, iniciando um massacre. Durante cerca de dez minutos, o bando esfaqueou quem estivesse pela frente, sem distinção de gênero ou idade. Muitas pessoas conseguiram correr, mas as que caíam ou tinham problemas de mobilidade eram alcançadas e atacadas. 

A polícia chegou rapidamente ao local, neutralizando parte dos terroristas e prendendo os demais depois, mas o saldo da tragédia foi amargo: 31 mortos e 143 feridos.

Enquanto lidava com o luto e a estupefação, o país logo soube pela imprensa local dos primeiros detalhes do crime, como o de que os criminosos mortos pelas forças de segurança carregavam bandeiras do Turquestão Oriental. O nome faz referência à forma como separatistas chineses se referem a Xinjiang, e o incidente marcou a primeira investida violenta da minoria muçulmana uigur fora das fronteiras da província a oeste da China.

Atualmente detentora do status de região autônoma, Xinjiang tem uma história complicada. Ao longo de séculos, foi habitada por turcos nômades, que se misturaram a etnias da Ásia Central e Oriental. Em 1759, a área foi conquistada pela primeira vez pelo Império Qing, que perdeu o controle da região após levantes armados liderados por locais. 

Em 1877, voltou a ser dominada pelo imperador, mas o controle central se esvaiu com a queda do império, em 1911, abrindo espaço para o fortalecimento de senhores da guerra e a fundação de um Estado que contou apenas com breve apoio da União Soviética. Ao ganhar a guerra civil e assumir o controle da China, os comunistas conseguiram sedimentar a anexação ao próprio território.

Uigures não se parecem com os chineses da etnia han. Seus olhos não são puxados, o formato do rosto é semelhante ao dos turcos e o idioma local não guarda nenhuma semelhança com o mandarim padrão, falado pela maior parte do país. 

A despeito da anexação definitiva ao território continental chinês, o separatismo nunca perdeu força, e pequenos ataques terroristas eram comuns na região. Kunming foi um ponto fora da curva e a constatação, pela maioria dos chineses han, que o terrorismo, problema tão comum na Europa e nos Estados Unidos, também podia fazer vítimas na China.

Professor de política chinesa e pesquisador da dinâmica terrorista na China na Universidade de Kent, Pak Kuen Lee afirma que o ataque em Kunming foi “um divisor de águas”, causando “enorme impacto psicológico” entre os chineses. 

Embora o número de mortos tenha sido consideravelmente menor, não demorou até que a tragédia passasse a ser chamada por autoridades e jornalistas locais por uma analogia funesta: “o 11 de Setembro chinês”.

Ainda que evidências indiquem apoio ao menos indireto de radicais estrangeiros, nenhum grupo jamais assumiu a autoria do ataque. O governo chinês, por sua vez, responsabilizou o Movimento de Independência do Turquestão Oriental (ETIM, na sigla em inglês), uma suposta organização terrorista cuja existência nunca foi de fato comprovada.

“Para avaliar se a comparação é válida, é preciso estabelecer se houve um ataque terrorista coordenado, como foi com a Al Qaeda [no 11 de Setembro]. Especialistas fora da China são céticos quanto às alegações, e é mais provável que militantes uigures tenham colaborado com o Talibã e outros grupos radicais menores no Afeganistão e no Paquistão”, diz Lee.

“Como a guerra ao terror chinesa é, supostamente, contra o ETIM, há uma diferença marcante: as lutas chinesas contra o terrorismo são locais, enquanto os americanos têm ambições mais globais.”

Diante de uma pretensa atuação de uma organização terrorista dentro do país, a China começou a implementar em 2017 uma série de medidas no combate ao radicalismo islâmico. Desde Kunming, não houve nenhum outro ataque de grandes dimensões em território chinês, mas isso não impediu Pequim de estruturar uma robusta campanha destinada a controlar muçulmanos em Xinjiang.

Sob acusações de violação dos direitos humanos e de limpeza étnica, o país internou compulsoriamente milhões de uigures, construindo campos em que eles recebem aulas de mandarim, treinamento vocacional e educação patriótica. A prática religiosa é monitorada de perto e deve passar por aprovação prévia de funcionários do PC Chinês mesmo depois que internos deixam os chamados campos de reeducação.

O professor Lee diz que, ao classificar as ações como contraterrorismo, a China busca normalizar as decisões tomadas em Xinjiang e mostrar que não há diferenças significativas quanto às práticas já adotadas por outros países. “No cerne do problema está que os chineses [da etnia] han não se sentem seguros até que as minorias étnicas dentro da China sejam suficientemente ‘sinicizadas'”, ou seja, mais próximas da cultura han, pontua ele.

Professor de economia política internacional da Unesp, o sinólogo Marcos Cordeiro Pires discorda. Para ele, a China tradicionalmente conviveu bem com minorias de religiões diferentes desde a época do império. Alguns conflitos na Ásia Central, porém, reviveram o separatismo entre militantes radicais chineses.

“O grande despertar para o levante muçulmano na Ásia Central foram as guerras da Chechênia [1994-1996 e 1999-2000], com ativistas sunitas atuando próximos de povos com ascendência turca, como é o caso de Xinjiang. E 2014 coincidiu com o ano da ascensão do Estado Islâmico, também um grupo sunita responsável por internacionalizar práticas radicais entre muçulmanos de várias partes do mundo”, relembra Pires.

Ele defende que não há indícios sólidos para fundamentar acusações de “genocídio cultural” e que mesmo as campanhas de reeducação não são diferentes do padrão adotado em vários países. Para o professor, o currículo escolar em todas as partes do mundo sempre buscou criar “coesão e desenvolvimento dos cidadãos”, e as “táticas chinesas se mostram mais efetivas que a força bruta em conflitos militares como no Iêmen”.

“No início dos anos 2000, quando o atentado em Nova York aconteceu, a China tinha cerca de um quarto da renda per capita que tem hoje e não dispunha de potência para avançar políticas externas, preocupando-se mais em fortalecer o crescimento econômico. Episódios violentos fora da província de Xinjiang deram um senso de urgência ao assunto”, destaca.

Agora, o desafio mais premente, ambos os professores concordam, será administrar as relações com o Talibã no Afeganistão, país com o qual a China compartilha um pequeno trecho de fronteira. Para Lee, Pequim identificou relações entre os uigures e a facção. 

“A questão aqui não é se a China pode isolar Xinjiang dos grupos radicais –porque isso implica comprovar a existência, mas se o Talibã honrará sua promessa [de comedimento]. O novo regime é mais moderado do que o de 20 anos atrás, como Pequim espera ou deseja?”

Pires defende que “terroristas só existem enquanto lutam pelo poder; ao chegar ao governo, são geralmente oficiais e burocratas”. Partindo desse pressuposto, o sinólogo afirma que, por meio da Iniciativa Cinturão e Rota, o maior programa de projeção de influência econômica e política da era Xi Jinping, a China “pode ser capaz de reinserir e moderar o Afeganistão”.

“As relações estáveis dos chineses com Cabul certamente podem ajudar a criar garantias contra o financiamento de uigures radicais, evitando, em última instância, a insurgência islâmica radical dentro da própria China continental.”

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Com busca por ‘prosperidade comum’, regulação econômica e desigualdade estão na mira de Xi Jinping https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/09/04/com-busca-por-prosperidade-comum-regulacao-economica-e-desigualdade-estao-na-mira-de-xi-jinping/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/09/04/com-busca-por-prosperidade-comum-regulacao-economica-e-desigualdade-estao-na-mira-de-xi-jinping/#respond Sat, 04 Sep 2021 15:00:24 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/2f38cbc843d82e802d4cbfa3e61b6e7d8e4d5048879deb325adeb1707157268d_5ffc6ca5251f9-300x215.jpeg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=260 É quase um ritual. Entre o fim de julho e o início de agosto, líderes chineses somem da mídia e não são vistos em público. Grandes eventos, inspeções rotineiras a fábricas e empreendimentos e até as circulares publicadas nos jornais do partido, tudo cessa. 

Da agitada Pequim, a elite política comunista se desloca para Beidaihe, cidade-resort cerca de 330 km a leste da capital. Desses encontros já saíram decisões de importância histórica, o que faz sinólogos e jornalistas ficarem de sobreaviso, à espera do que virá.

Neste ano, o líder chinês, Xi Jinping, não demorou a sinalizar indícios de qual tinha sido a prioridade: a ênfase na busca da chamada “prosperidade comum”. Enquanto limusines com vidros escurecidos, policiais à paisana e cães farejadores circulavam pela cidade litorânea, o dirigente deixava o resort com o discurso pronto.

A tradição dessas cúpulas remonta ao século passado. Foi em Beidaihe que Mao Tsé-tung decidiu atacar a ilha Kinmen, controlada pelos nacionalistas, no episódio que desencadeou a Segunda Crise do Estreito de Taiwan, em 1958. O lugar também foi palco das discussões do Grande Salto Adiante —desastroso plano desenvolvimentista do fim dos anos 1950, responsável pela morte de dezenas de milhões de chineses— e das campanhas de repressão de Deng Xiaoping em 1983, destinadas a conter inúmeros episódios de violência pós-Revolução Cultural

Em 2021, o que saiu de lá foram essas duas palavras —ainda que elas já tivessem sido citadas antes; de acordo com a Bloomberg, o conceito apareceu ao menos 65 vezes em discursos neste ano. No último dia 17, Xi usou uma reunião da Comissão Central de Assuntos Financeiros e Econômicos para se dedicar a elas.

“A prosperidade comum é um requisito essencial do socialismo e uma característica-chave da modernização ao estilo chinês”, disse. “A prosperidade comum é a riqueza compartilhada por todos, tanto em termos materiais quanto culturais, e deve ser avançada passo a passo.”

Embora não signifique uma renúncia às regras do capitalismo, a política é um passo atrás no que o país vem fazendo desde que começou a se abrir, em 1978. À época, diante de uma economia destroçada e da miséria geral, Deng anunciou a intenção de deixar que “alguns fiquem ricos primeiro”, assumindo uma tolerância à desigualdade criticada pelo comunismo em prol do enriquecimento nacional. Deu certo, mas gerou uma grande distorção: a disparidade entre o topo e a base da pirâmide de renda.

Referências à prosperidade comum remontam ao governo Mao, ainda na fundação da república comunista, e se tornaram o centro da agenda política chinesa a partir de 2006, na era Hu Jintao. 

Em março daquele ano, o Congresso Nacional aprovou o 11º Plano Quinquenal –desenhado para prever as prioridades do Estado chinês–, introduzindo políticas inéditas no léxico chinês ao enfatizar que “crescimento econômico não é equivalente a desenvolvimento econômico”. Após o avanço observado no início do milênio, o documento clamava por “estabilidade em vez de rapidez” e lançava as bases de medidas que colocassem “as pessoas em primeiro lugar”.

Pesquisadora do conceito há quase duas décadas, a diretora do Departamento de Estudos Asiático-Americanos da Universidade da Califórnia, Cindy Fan, diz que, ao deixar que algumas pessoas ficassem ricas primeiro, Deng foi pragmático. “No contexto do final dos anos 1970 e início dos 1980, a China ainda era pobre, e a economia estava tão restrita que sua abordagem abriu as portas para que os mecanismos de mercado começassem a operar”, conta. Porém, conforme o país crescia, a desigualdade também avançava.

“É amplamente reconhecido que na China o acesso a educação, saúde e outros serviços básicos é altamente desigual. Rede de segurança social, planos de aposentadoria e seguridade social não estão bem estabelecidos. No governo de Xi, o tema se tornou urgente.”

O problema pode ser visto em números. No índice Gini, que mede a desigualdade em uma escala de 0 a 1, em que 0 significa igualdade de ganhos, a China marcou 0,46 em 2020, segundo o Banco Mundial. O resultado a coloca em situação pior que nações como Etiópia e Sudão. Burocratas e líderes do partido defendem há vários anos que, se o número não se aproximar de 0,40, há risco de convulsão social.

Para Fan, há espaço para diminuir essa lacuna entre ricos e pobres, e a China já se provou capaz de retirar milhões de pessoas da miséria extrema. Ela diz acreditar, contudo, que ainda que não queira matar o empreendedorismo ou redesenhar o chamado “socialismo de mercado” (sistema híbrido chinês que combina a estrutura política socialista com dinâmicas econômicas do capitalismo), Xi incentivará uma regulação maior em setores da economia.

“Comunicações oficiais têm mencionado com frequência a necessidade de aumentar o tamanho do grupo de renda média. Não parece que esses movimentos sejam antiempreendedorismo ou anti-investimento estrangeiro, mas está claro que o governo chinês quer impor mais regulamentações e usar ferramentas para melhorar a distribuição de renda”, diz.

Sob a bandeira da prosperidade comum, complementa ela, “é provável que o governo torne serviços como saúde mais acessíveis e baratos para a população rural, migrantes rurais e pessoas pobres nos centros urbanos”.

A especialista diz que, da forma como vem sendo mencionado por Xi, o termo abarca muitos setores e pode ser usado tanto para conter a desigualdade quanto para alcançar objetivos estratégicos essenciais ao Estado.

“Regulamentações mais pesadas das grandes empresas de tecnologia podem reduzir seu monopólio do mercado e ajudar a resolver os problemas de segurança cibernética. Exigir que o setor de educação privado não tenha fins lucrativos ajuda a reduzir a desigualdade e pode impulsionar as escolas públicas e reduzir a pressão sobre as crianças”, compara.

Para afastar rusgas com as políticas estatais, essas mesmas empresas que podem ser alvo de regulações já se adiantaram. Algumas das maiores companhias privadas nacionais, como a Tencent e a Pinduoduo, anunciaram investimentos de R$ 80,5 bilhões e R$ 8 bilhões, respectivamente, em um fundo de prosperidade comum e em desenvolvimento agrícola.

“A médio prazo, os empresários chineses provavelmente seriam mais cautelosos em termos de conquistar uma fatia muito grande do mercado e provavelmente adotariam mais ativamente a responsabilidade social corporativa como parte de seu plano e estratégia de negócios. Ela ganhou força na China no final dos anos 2000, mas o foco na prosperidade comum aceleraria ainda mais sua integração com o empreendedorismo, especialmente em grandes corporações.”

Erramos: A reportagem afirmou incorretamente que, caso o índice Gini, que mede desigualdade, se aproxime de 0,40, haveria risco de convulsão social na China, na visão de burocratas e líderes do Partido Comunista Chinês. Na verdade, o risco, segundo essa percepção, ocorre quando a cifra se afasta de 0,40.

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Queda de Cabul repercute na imprensa chinesa e representa xadrez geopolítico para Pequim https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/08/16/queda-de-cabul-repercute-na-imprensa-chinesa-e-representa-xadrez-geopolitico-para-pequim/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/08/16/queda-de-cabul-repercute-na-imprensa-chinesa-e-representa-xadrez-geopolitico-para-pequim/#respond Mon, 16 Aug 2021 20:39:37 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/ffcf2721672a8db710ea072d6db688297766d64a4e330a26408148b60ff8f4d3_6101356ce3621-300x215.jpeg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=254 A tomada de Cabul pelo grupo fundamentalista Taleban repercutiu com força na imprensa e nas redes sociais chinesas. Encabeçado pelas imagens de um helicóptero deixando a embaixada dos Estados Unidos no Afeganistão e pela comparação com cena similar em Saigon –atual Ho Chi Minh, capital do Vietnã–, em 1975, o tópico sobre a crise afegã no Weibo, espécie de Twitter chinês, atraiu mais de 33 milhões de postagens.

“Este é, sem dúvidas, um momento extremamente embaraçoso para os EUA e um duro golpe para o poder americano”, escreveu o jornal oficial Diário do Povo, conhecido como a “voz do Partido Comunista”. “Antes da queda de Saigon, o presidente sul-vietnamita Nguyen Van Thieu denunciou os Estados Unidos por sua traição, [chamando-os] de desumanos, irresponsáveis e não confiáveis. A mesma cena está agora se repetindo no Afeganistão.”

O tom nacionalista dos textos produzidos pela mídia estatal se refletiu nos fóruns virtuais. Enquanto as cenas de desespero dos afegãos corriam o mundo, comentários destacavam a rápida incursão militar dos fundamentalistas como uma humilhação aos americanos.

“A ascensão e a queda do status de uma potência mundial não parecem depender da economia, mas do resultado da guerra”, escreveu Chen Ping, professor da Universidade de Fudan e celebridade virtual, com quase 4 milhões de seguidores. Outro internauta fez um paralelo entre a situação no Afeganistão e a forma como os americanos lidaram com a pandemia de coronavírus, “novamente se tornando uma piada mundial”, enquanto outra postagem usava as fotos da evacuação da embaixada como um símbolo da “derrocada do imperialismo e dos reacionários, ambos tigres de papel”.

A maneira como a imprensa chinesa reagiu aos acontecimentos recentes no país vizinho não é despropositada. Autor do livro “The China-Pakistan Axis: Asia’s New Geopolitics” (O eixo China-Paquistão: a nova geopolítica da Ásia, inédito no Brasil), Andrew Small afirma que Pequim provavelmente usará o caos em Cabul como um exemplo aos seus vizinhos de que os americanos não são parceiros confiáveis.

“Certamente as imagens do helicóptero deixando uma cidade arrasada e tomada pelo Taleban são um símbolo de uma guerra longa e infrutífera. É de certa forma esperado que, a despeito da instabilidade causada pela queda de Cabul, Pequim faça paralelos com o que aconteceu quando os americanos perderam a guerra no Vietnã. Muitos veículos reproduziram uma entrevista do [secretário de Estado] Antony Blinken negando a derrota, enquanto as pessoas tentavam desesperadamente deixar a cidade sitiada”, analisa o pesquisador sênior do German Marshall Fund.

As semelhanças com o Vietnã em 1975, porém, param por aí. Para Small, os chineses agora precisarão se preocupar com um delicado xadrez geopolítico que traz instabilidade às suas fronteiras e ameaça interesses econômicos.

A China se adiantou à queda do governo afegão apoiado por Washington e recebeu no mês passado em Tianjin, a 110 quilômetros da capital, uma delegação encabeçada por Abdul Ghani Baradar, cofundador do Taleban. Logo após a fuga do presidente Ashraf Ghani, diplomatas chineses declararam ter a intenção de manter “relações amistosas” com o novo governo. A embaixada em Cabul não foi fechada e cidadãos chineses tampouco foram retirados do país, embora a representação diplomática tenha divulgado uma nota pedindo “muita atenção à situação de segurança”.

Especulações de que o reconhecimento da legitimidade do Taleban foram motivadas por interesses financeiros chineses na região foram levantadas pela imprensa ocidental. Small, entretanto, afirma que a postura pragmática da China denota preocupações com a segurança doméstica, e não uma tentativa imediata de lucrar com a situação. Ele também diz não acreditar que a China vá ocupar o vácuo de poder deixado pelos EUA, a exemplo do que aconteceu na Síria.

“A Rússia já tinha presença militar na Síria e substituiu os EUA quando as tropas americanas deixaram a região. Não é o caso dos chineses no Afeganistão, e não creio que a China esteja interessada em expandir a sua Iniciativa de Cinturão e Rota para lá. A estratégia parece ser a de manter o Afeganistão como um Estado tampão, impedindo que mantenham laços com grupos extremistas na região de Xinjiang, por exemplo. Pequim me parece relutante e provavelmente não deve colocar dinheiro no país imediatamente”, diz.

Além das agitações fronteiriças, o Afeganistão também representa uma peça importante em um quadro mais amplo e delicado: as relações chinesas com o Paquistão e a Índia.

Após os ataques do 11 de Setembro, os paquistaneses foram acusados por Washington de financiar atividades terroristas do Taleban e da Al Qaeda. Islamabad é uma parceira de longa data de Pequim e inimiga histórica dos indianos, mas a presença de milícias fundamentalistas apoiadas pelo Paquistão no território disputado da Caxemira tende a criar uma “delicada situação de segurança estratégica local” que alarma os dois países mais populosos do mundo.

Para Small, a Índia provavelmente precisará analisar cuidadosamente os riscos do Taleban e, mesmo com as desavenças com os chineses, deve se aproximar de Pequim na cobrança por moderação.

“As relações entre Índia e China estão delicadas neste momento, com estranhamentos militares na fronteira. Mas os dois países compartilham preocupações semelhantes quanto à insurgência de terroristas no sul da Ásia, já que nove trabalhadores chineses foram mortos no mês passado em um ataque financiado por terroristas afegãos na cidade paquistanesa de Dasu. Assim, é provável que o Paquistão seja dragado outra vez para a crise e sofra pressões de ambos os lados.”

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Brasil se consolida como principal destino sul-americano de investimentos chineses, mostra estudo inédito https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/08/05/brasil-se-consolida-como-principal-destino-sul-americano-de-investimentos-chineses-mostra-estudo-inedito/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/08/05/brasil-se-consolida-como-principal-destino-sul-americano-de-investimentos-chineses-mostra-estudo-inedito/#respond Thu, 05 Aug 2021 12:49:33 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/49059993546_192401c9bf_o-300x215.jpg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=240 Mesmo com a retórica diplomática agressiva em Brasília, os investimentos chineses no Brasil cresceram 117% em 2019. Sob os efeitos da pandemia no ano passado, os números tiveram retração (US$ 7,3 bilhões no ano anterior para US$ 1,9 bilhão, queda de 74%), mas não o suficiente para ameaçar o posto de principal destino dos investimento na América do Sul (47% de todos os aportes), somando US$ 66,1 bilhões na série história 2007-2020. Os números foram revelados por uma pesquisa inédita do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), publicada nesta quinta (5).

O levantamento mostra que, desde 2007, empresas chinesas já efetivaram 176 empreendimentos no Brasil, 31% deles no setor de energia elétrica. State Grid e China Three Gorges, duas gigantes estatais na área de eletricidade, mantêm por aqui suas maiores fatias de investimento fora da China, com 48% e 60% respectivamente.  

Autor do estudo, o pesquisador e diretor de conteúdo do CEBC, Túlio Cariello, diz que a atração de aportes expressivos no setor elétrico do Brasil é uma combinação de fatores: a tradição chinesa em investimentos na área de infraestrutura, a necessidade de crescimento dessas estatais para além da fronteiras nacionais e um ambiente de negócios mais estável, se comparado com outros países em desenvolvimento.

“A necessidade de internacionalização dessas empresas chinesas coincidiu com um momento em que o Brasil abria o seu setor de energia elétrica. Óbvio que o Brasil tem apresentado indicadores econômicos irregulares, mas, se comparado à América Latina ou a África de modo geral, aqui energia é uma área estável, com bons engenheiros e marco regulatório maduro. São fatores decisivos nessa atração”, diz.

O pesquisador explica que mesmo com a queda nos aportes do ano passado —tendência mundial causada pela Covid-19, o setor elétrico brasileiro foi o destino de 97% dos investimentos chineses confirmados no país. São estatísticas tão superiores que, na opinião dele, “é um caso que precisa ser visto à parte dos demais empreendimentos”.

“A China não está sozinha. Há investimentos parecidos da Espanha, da Alemanha e da França, por exemplo. O que chama atenção aqui é que os chineses se apresentam como competitivos não só pelo capital, mas também pelo domínio de tecnologias que não são dominadas por muitos países como o UHV [ultra-alta tensão, capaz de otimizar a distribuição de energia elétrica a longas distâncias], o que é muito benéfico para modernizar nossa matriz energética”, detalha.

Logo atrás da energia, a indústria manufatureira (que abarca os setores químico, de fabricação de maquinário e celulose) se destaca com 28% dos projetos confirmados. Frequentemente citados como essenciais à segurança alimentar chinesa, a agricultura e pecuária ficam com 7%, com destaque para a entrada da gigante estatal Cofco que mantém atividades da origem até o transporte de soja e cana-de-açúcar no Brasil.

Ataques à China não diminuíram apetite chinês

Com o início da pandemia, 2019 foi um ano especialmente tenso em termos diplomáticos para as relações sino-brasileiras. O deputado federal e presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, Eduardo Bolsonaro, protagonizou brigas com o embaixador chinês, Yang Wanming, enquanto membros do gabinete ministerial e o próprio presidente Jair Bolsonaro acusaram a China de “guerra biológica”. Mesmo assim, os volumes aportados pelos chineses no Brasil têm se mantido em trajetória ascendente desde o início do atual governo. Para Cariello, os dados mostram que o pragmatismo e o pensamento de longo prazo da China deram provas de resiliência e devem resistir às rusgas no curto prazo.

“Muitos desses investimentos começaram há tempos, né? Eu realmente não consigo vê-los [os chineses] pisando no freio, não acho que empresa chinesa que esteja construindo uma linha de transmissão no Brasil agora pare a obra porque o Bolsonaro falou alguma coisa ruim sobre a China. O que vale no final das contas para o mercado, na China e no resto do mundo, é o lucro”, prevê Cariello, acrescentando que dados de 2021, embora não consolidados, mostram que empresas chinesas continuam levando leilões para administração de usinas e linhas de transmissão.

Mais maduro e confortável com a legislação brasileira, o investidor chinês já se propõe a empreender do zero, construindo fábricas e montando novas operações no país. De acordo com o CEBC, fusões e aquisições (chamadas de “brownfields”) ainda representam 70% de todos os aportes no Brasil desde 2007, mas há mudanças significativas quando se analisam os dados referentes aos projetos em andamento: 48% deles são “greenfield”, ou seja, totalmente novos. Só essa fatia responde pela geração de 34,5 mil empregos diretos, enquanto os 40% em “brownfields” mantiveram os postos de outros 140,1 mil. Os outros 12% correspondem a joint ventures.

Com a expansão da fronteira tecnológica na China, Cariello acredita que há agora uma nova oportunidade se formando para os chineses no Brasil: a tecnologia de ponta. Com isso, deve se tornar mais comum ver as marcas de lá em áreas como a telefonia, internet das coisas, veículos elétricos e autônomos e inteligência artificial.

“A Huawei, que é líder na tecnologia 5G no mundo, já está em território nacional há bastante tempo e deve ganhar mercado, mesmo com as dificuldades políticas envolvidas no leilão. Para várias outras áreas, o Brasil será um mercado interessante. Há um elemento cultural envolvido pelo fato do brasileiro gostar de redes sociais, de games, troca bastante de celular e o mercado de aplicativos aqui é grande. Então é o setor a se acompanhar daqui para frente.”

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‘Governo Biden não tem estratégia para conter a China’, diz famoso ex-embaixador de Singapura https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/07/29/governo-biden-nao-tem-estrategia-para-conter-a-china-diz-famoso-ex-embaixador-de-singapura/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/07/29/governo-biden-nao-tem-estrategia-para-conter-a-china-diz-famoso-ex-embaixador-de-singapura/#respond Thu, 29 Jul 2021 13:30:54 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/KishoreMahbubani_Arquivo-pessoal-300x215.jpg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=224 De perfil sereno e voz comedida próprios de quem construiu a vida na diplomacia, Kishore Mahbubani é o tipo de intelectual que costuma ser consenso mesmo em lados antagônicos. Ex-embaixador de Singapura, com mais de 30 anos na chancelaria do país (incluindo uma década na ONU) e outros 15 na academia, construiu fama por ser um dos mais notáveis analistas da conjuntura geopolítica asiática.

É valendo-se da longa experiência a serviço das relações internacionais que o singapurense se aventura a tentar destrinchar um dos temas mais espinhosos na diplomacia atual: o futuro da relação sino-americana e como ela deve impactar o mundo nas próximas décadas. Em “A China Venceu?” (Intrínseca, 368 páginas), lançado no Brasil nesta semana, Mahbubani destrincha, ponto a ponto, os principais entraves à cooperação entre chineses e americanos.

Como quem escreve um telegrama a um Ministério das Relações Exteriores e com as credenciais de quem acompanha o desenrolar dos eventos sem ser, necessariamente, integrante de nenhum dos lados, o professor escreveu o que ele próprio define como “um presente para os Estados Unidos” e um lembrete a Washington de que “o mundo mudou”.

Em entrevista à Folha, Mahbubani expande os temas do livro, faz previsões sobre como devem se desenrolar os principais problemas entre a China e o Ocidente e um alerta ao Brasil: na briga entre as duas potências, ele diz que Brasília deveria anunciar neutralidade de antemão e se eximir de tomar lado se quiser preservar seus próprios interesses nacionais.

Folha: Um documento produzido pelo Atlantic Council [tradicional think tank americano] inspirado na estratégia americana para a Guerra Fria sugere que, se os EUA quiserem conter a China, devem tentar atrair a Rússia para o lado americano, o que seria muito difícil em termos de opinião pública. Como os EUA devem equacionar essas divergências internas com seus objetivos geopolíticos em relação a Pequim?

Kishore Mahbubani: Os americanos não conseguem entender que o mundo mudou fundamentalmente. Não é só sobre a China, é o fim da era de dominação ocidental da história mundial. E quando [Joe] Biden quer enfrentar a China, o que faz? Ele ressuscita o G7, um clube do passado que dificilmente vai saber lidar com um desafio futuro. Os EUA não conseguem nem mesmo conceber a possibilidade de que qualquer potência possa se tornar mais forte do que eles. Foram o número 1 por 130 anos e provavelmente a sociedade mais bem-sucedida que já vimos na história da humanidade, mas a história também nos ensina que você não pode ser o número 1 para sempre, certo? Os EUA têm um quarto da população da China e apenas 250 anos, enquanto a China tem 5.000. Certamente é possível que a China se torne maior que os EUA.

F: O senhor mencionou em seu livro que, como a dominação dos EUA na Europa, é uma anomalia na história.

KM: É uma anomalia, mas, novamente, os americanos não podem aceitar isso. E para eles, o importante não é só se aliar à Rússia, é a necessidade de mudança total de mentalidade. O maior medo da Rússia não vai ser a Europa. Quer dizer, os europeus são tão pacíficos que não vejo a Europa caminhando para uma guerra, mas a China é um desafio real para eles. Eles têm a maior fronteira com a China. Os EUA poderiam tentar serem habilidosos e possivelmente tentar atrair a Rússia, mas, infelizmente, os americanos passaram pelo menos 30 anos humilhando a Rússia. Então a razão pela qual os EUA estão tendo tantos problemas para lidar com este novo desafio na China é porque não entenderam que cometeram erros fundamentais. E na verdade, nesse sentido, meu livro é um presente para os EUA, ao tentar dizer a eles “ei, o mundo mudou e você deve mudar também”.

F: Pelo jeito que o senhor fala, parece que essa oportunidade com a Rússia já se perdeu. Mesmo que os EUA queiram se envolver com a Rússia, não será fácil para Vladimir Putin virar a opinião pública e tentar cooperar com os EUA contra a China….

KM: Acho que pode ser difícil para Vladimir Putin, porque o Ocidente o demonizou muito. Sabe, depois de demonizar tanto alguém, é muito difícil se comprometer. A razão pela qual eu coloquei a Crimeia para ilustrar os erros estratégicos dos EUA no livro é porque os americanos ameaçaram expandir a Otan para a Ucrânia. A Ucrânia é tão importante em termos de consciência russa, de compreensão russa, que quando os EUA tentaram humilhar a Rússia na Ucrânia, eu não entendi nada. E de muitas maneiras a Ucrânia poderia ter sido salva se funcionasse como uma espécie de Estado-tampão, ao invés de membro da Otan, como tentaram fazer.

F: Falando em G7, uma das principais viagens que Biden fez nos primeiros meses na Presidência foi participar da cúpula do grupo, quando anunciaram a intenção em criar um fundo de crédito para infraestrutura nos países em desenvolvimento, e assim contrapor a Iniciativa de Cinturão e Rota [informalmente conhecida como “nova rota da seda chinesa”]. Até que ponto isso será eficaz para lidar com os países africanos e asiáticos?

KM: Bem, acho que se o presidente Biden deseja fornecer uma fonte alternativa de financiamento para o desenvolvimento de infraestrutura no Terceiro Mundo, é uma ideia muito boa. Se eu sou um pequeno país na África e a China diz “eu posso construir uma ponte para você” e os EUA também se oferecem, então poderei escolher o que for melhor. Mas a China já gastou US$ 1 trilhão na iniciativa de Cinturão e Rota, enquanto os EUA estão tendo todas as dificuldades orçamentárias para construir sua própria infraestrutura.

F: Sim, o pacote de infraestrutura de Joe Biden está há algum tempo parado no Senado…

KM: Exatamente. Sabe, quando fui pela primeira vez aos EUA em 1974, aquele era o Primeiro Mundo. Pequim era o Terceiro Mundo. Hoje, se você vai para Pequim, o aeroporto de Pequim e o aeroporto de Xangai são de Primeiro Mundo, enquanto o aeroporto John F. Kennedy [Nova Iorque] e o Washington Dulles [na capital americana] são de Terceiro Mundo. Se você quiser pegar um trem do Terceiro Mundo, pegue o trem de Boston para Nova Iorque, bem diferente do trem de Pequim para Xangai. Se os EUA estão falando sério sobre querer ajudar a melhorar a infraestrutura de outros países, eles deveriam primeiro melhorar sua própria infraestrutura. Uma das estatísticas mais surpreendentes que alguém me deu foi que, na China, você pode consertar uma ponte em 43 horas, e nos EUA, leva cinco anos. Acho que há um certo grau de irrealidade no que os EUA estão fazendo. É claro que podem contrapor o que os chineses vêm fazendo na África, mas precisam estar à altura.

F: Os chineses são bem conhecidos por ignorar disputas internas, usualmente não mexem com você se você não mexer com eles. Já os EUA geralmente vinculam esse tipo de acordo econômico a uma série de compromissos. Quão eficaz será seduzir esses países, muitos deles em desacordo com o modelo americano de democracia e padrões de direitos humanos, se o dinheiro vier acompanhado de vigilância?

KM: Para ser justo com os EUA, embora digam que a disputa com a China é uma competição de democracias contra autocracias, eles não hesitam em fazer parcerias com autocracias. Estive na mesma sala com o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, há apenas duas horas e ele estava dizendo que os EUA não hesitarão em apoiar o Vietnã contra a China. O Vietnã é uma autocracia. Todos os países colocarão seus interesses nacionais em primeiro lugar, e não os interesses de outros países.

F: Sobre a América Latina, há algo que certamente preocupa os governantes da região. Se chegarmos a uma situação de ter de decidir entre a China e os EUA, o Brasil estará em um posição muito difícil, porque geográfica e culturalmente, estamos mais próximos dos EUA, mas, economicamente, estamos nos tornando cada vez mais dependentes da China. O que vai acontecer com esses tipos de Estados que orbitam em torno de ambos os países?

KM: Essa não é uma pergunta sendo feita apenas pelo Brasil, mas por 193 países no mundo. Para eles, aconselho a lerem um artigo do premiê de Singapura [Lee Hsien Loong] para a [revista] Foreign Affairs quando ele diz, muito claramente, que Singapura é amiga dos Estados Unidos e da China. Não queremos escolher e isso é bom. Novamente, quando ouvi o secretário de Defesa, Lloyd Austin, ele mencionou que entende perfeitamente essa posição.

Nós queremos ser amigos de ambos. Acho que essa sua pergunta é importante, porque é muito importante para países como o Brasil não esperar até que você seja obrigado a escolher. Vocês deveriam proclamar com antecedência que esperam manter laços de amizade com os dois países. Seria injusto os EUA pedirem ao Brasil uma escolha. Mas o Brasil junto com outros países da América Latina, África e Ásia, deveriam se reunir e deixar bem claro que se quiserem brigar, que vão em frente, mas não nos peçam para nos juntarmos a vocês.

F: Você diz no seu livro que não havia clareza entre os funcionários do governo [Donald] Trump quanto à estratégia por trás das tarifas na guerra comercial —se era uma tentativa de desconectar as economias chinesa e americana ou uma forma de obrigar Pequim a recuar em práticas que consideravam injustas. Biden foi eleito, mas ainda não aboliu essas tarifas. Se Trump não tinha um objetivo claro, Biden tem?

KM: Durante toda a campanha, Biden costumava dizer consistentemente que a guerra comercial de Trump contra a China não prejudicou a China. Isso é verdade. Mas nos EUA, há uma histeria anti-China muito forte que se apoderou dos país. E assim, embora os EUA sejam um filho da civilização ocidental, um filho do Iluminismo ocidental e, portanto, deveriam tomar decisões com base na razão, na lógica e na ciência. Mesmo assim, não conseguem fazer a coisa razoável e lógica que é retirar essas tarifas. De certa forma, prova o ponto-chave em meu livro, que os EUA estão agora tão comprometidos com essa luta geopolítica contra a China que, na verdade, estão prejudicando seus próprios interesses. E nesse sentido eu diria que, assim como Trump não tinha nenhuma estratégia de longo prazo, até o momento, o governo Biden também não tem.

F: A China acaba de encerrar as comemorações dos 100 anos do PC Chinês e a festa foi uma oportunidade para Xi Jinping alardear as conquistas da sigla ao longo da história. Mas também foi um lembrete ao Ocidente dos principais pontos de tensão nas relações: a situação de Hong Kong em 2019, a militarização do mar do Sul da China, Taiwan e a questão dos uigures em Xinjiang… Esses elementos se tornaram inevitáveis e continuarão a impedir o diálogo entre o Ocidente e a China nos próximos anos?

KM: Nenhuma dessas questões impedirá o crescimento da China. E Hong Kong, como você sabe, faz parte da China. No caso do mar do Sul da China, você ouvirá muito barulho, mas não haverá batalhas militares. Acredito que os principais envolvidos conseguirão alcançar um compromisso pacífico a menos, é claro, que haja uma escaramuça entre uma embarcação naval americana e uma embarcação naval chinesa. Mas para os principais afetados, como a Malásia, Brunei, Filipinas, Vietnã, eles têm reivindicações conflitantes com a China, mas devem chegar a um acordo.

F: Taiwan, porém, continua sendo um problema.

KM: É claro, mas Taiwan pode permanecer pacífica se os EUA estabelecerem um entendimento com a China em cumprir o que prometeu nos anos 1970: manter relações oficiais com Pequim e relações não oficiais com Taiwan. Portanto, se esse for o entendimento, não haverá mudança.

F: Mas Xi Jinping tem repetido sucessivas vezes que não quer empurrar esta questão para a próxima geração. Isso não pode ser considerado um sinal de alerta da liderança chinesa?

KM: Enquanto nenhum esforço for feito para mudar o status quo, a paz pode permanecer no estreito de Taiwan. Se alguém tentar tornar Taiwan independente, aí sim a China declarará guerra e é por isso que hoje, quando ouvi o secretário de Defesa, fiquei feliz que ele tenha repetido duas ou três vezes que os EUA estavam comprometidos com a política da China única.

F: O termo “política de China única” é bastante ambíguo porque você não está pressupondo qual China é a única China.

KM: Uma vez que os EUA estabeleceram relações com Pequim, eles reconhecem o governo de Pequim como o governo legítimo da China. Mesmo os funcionários do Departamento de Estado precisam renunciar antes de serem destacados para Taiwan. Então, eu acho que, contanto que eles não mudem a fórmula atual, estaremos bem. Portanto, devemos encorajar os EUA e a China apenas a manter o status quo em Taiwan e não pressionar pela independência, porque se isso acontecer, certamente haverá problemas para os taiwaneses.

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Em um esforço para trazer para os leitores brasileiros análises e informações sobre os últimos acontecimentos do outro lado do mundo, o blog “China, Terra do Meio” é atualizado semanalmente. Além dos textos por aqui, você também pode assinar a nossa newsletter, enviada todas as sextas-feiras.

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Plataforma brasileira lança guia em português para iniciantes em China https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/07/19/plataforma-brasileira-lanca-guia-em-portugues-para-iniciantes-em-china/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/07/19/plataforma-brasileira-lanca-guia-em-portugues-para-iniciantes-em-china/#respond Mon, 19 Jul 2021 20:41:39 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/6209907850_e554d92ede_3k-300x215.jpg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=215 Conhecida por ser a pioneira no lançamento de uma newsletter sobre a China em língua portuguesa, a plataforma Shūmiàn acaba de publicar um guia para brasileiros iniciantes na área de sinologia.

Com 44 páginas e participação de 13 sinólogos brasileiros, o guia passeia por vários temas no universo do estudo da China, de sugestões de livros básicos a subtópicos como filosofia, religiosidade, cultura, economia, meio ambiente e relações internacionais. Neste último tema, há recortes para as relações sino-brasileiras e africanas. Os organizadores também indicam filmes em cada seção.

Idealizadora do guia, a cofundadora e mestre em Estudos da China Contemporânea pela Universidade do Povo Júlia Oliveira Rosa conta que o guia começou a ser desenhado pela equipe —atualmente com nove voluntários— desde o último trimestre de 2020.

“Começamos porque existe uma lacuna na base do estudo da sinologia no Brasil. Hoje já temos muita gente qualificada na área, mas é urgente formar mais quadros, e as nossas universidades não cobrem muito a China. Com esse guia, a gente também tenta ajudar quem é autodidata e sempre aborda nossa equipe pedindo recomendações de livros e documentários”, conta Rosa.

Inicialmente, a equipe pretendia lançar o compilado ainda no ano passado. Mas conforme o trabalho avançou, a ambição de torná-lo mais abrangente também cresceu.

“Somos muito preocupados com questões de diversidade e tentamos evitar o perfil padrão da academia brasileira, que é majoritariamente masculina e branca. Além disso, fizemos um esforço para mapear professores fora do eixo Sul-Sudeste”, conta.

O resultado, explica a sinóloga, deve ser visto com um trabalho em desenvolvimento. A Shūmiàn espera atualizar o guia anualmente, sempre com os temas mais atuais na China. Para a próxima edição, Julia adianta, a proposta é adicionar tópicos sobre política interna chinesa, questões de gênero, tecnologia e direito.

O guia pode ser baixado gratuitamente neste link.

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Pouco representadas no PC Chinês, mulheres são incentivadas a cumprir ‘papéis tradicionais’ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/07/06/pouco-representadas-no-pc-chines-mulheres-sao-incentivadas-a-cumprir-papeis-tradicionais/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/07/06/pouco-representadas-no-pc-chines-mulheres-sao-incentivadas-a-cumprir-papeis-tradicionais/#respond Wed, 07 Jul 2021 00:05:08 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/c10ed1ba509567b3893ea8d08b309a6593ca187f415f8e29bb14b9c9263c63e0_60dd1fca02de5-300x215.jpeg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=203 Partido sob Xi Jinping passou a reforçar dever como ‘esposas e mães’ para  enfrentar desafios demográficos

No dia 1º de julho, enquanto Xi Jinping discursava na Praça da Paz Celestial para uma plateia cuidadosamente escolhida por ocasião do centenário do Partido Comunista Chinês, a câmera da TV estatal passeava pelos convidados de honra sentados próximos ao púlpito. Os mais atentos talvez tenham percebido uma categoria pouco representada ali: mulheres.

Não é uma coincidência. O último censo demográfico, divulgado em maio pelo Escritório Nacional de Estatística da China, mostrou que mulheres correspondem a 48,76% da população, ou cerca de 688,44 milhões dos 1,4 bilhão de habitantes do país asiático. A representação feminina dentro do Partido Comunista, porém, é significativamente menor. Dados compilados em 2019 revelam que apenas 27,9% dos filiados são mulheres —e esse número tende a ser menor quanto maior for a importância do cargo.

Entre os delegados do Congresso Nacional do Povo e os membros da Conferência Consultiva do Povo Chinês, os mais altos órgãos na estrutura legislativa do país, apenas um quinto é formado por representantes femininas. No Politburo, que conta com 25 membros, há apenas uma —a vice-primeira-ministra Sun Chunlan—, e, desde a fundação da república comunista, em 1949, nenhuma mulher foi escolhida para ocupar uma das sete cadeiras do Comitê Permanente do Politburo, o topo da hierarquia burocrática.

Ainda que o próprio partido mencione entre suas prioridades a necessidade de recrutar mais mulheres e o governo estabeleça uma cota de 10% em postos executivos em nível local (vilas, condados, cidades e províncias), a meta raramente é atendida.

Especialista na estrutura do PC Chinês e consultor de assuntos sobre a China no Grupo Eurasia, Neil Thomas diz que os números atuais representam uma melhoria, já que em 1998 mulheres respondiam por apenas 16,6% dos filiados. Ele afirma existir uma “preferência institucionalizada” por líderes masculinos e um foco cada vez maior para que mulheres cumpram “papéis tradicionais de gênero e venham a se tornar esposas e mães, ajudando a enfrentar desafios demográficos que podem ameaçar a estabilidade do país”.

“Não se pode questionar publicamente a política do partido, e está ficando mais difícil fazer isso, mesmo nas reuniões internas. Portanto, se você é mulher, há um nível extra de pressão para obedecer as leis e os regulamentos que estimulam ter mais filhos e ser mais responsável ​​por cuidar dos filhos e dos afazeres domésticos”, diz Thomas.

A situação atual contrasta com a época em que o PC Chinês foi fundado, em 1921. Iniciado na Universidade de Pequim, o movimento anti-imperialista cobrava uma postura mais dura dos nacionalistas no combate às tropas invasoras japonesas e na rejeição aos termos do Tratado de Versalhes que mantinham retalhos do país nas mãos de forças estrangeiras. Naquele momento, as estudantes se juntaram aos manifestantes por participação política e foram, mais tarde, cooptadas na formação do partido que surgiria dois anos depois.

Contudo, a ascensão de Mao Tse-tung ao poder em 1949 e o foco em questões de classe desviaria o partido do seu objetivo histórico de alcançar a igualdade de gênero na China, como explica Zheng Wang, professora de estudos de gênero na Universidade de Michigan e autora do livro “Finding Women in the State: A Socialist Feminist Revolution in the People’s Republic of China” (encontrando mulheres no Estado: uma revolução socialista feminista na República Popular da China, inédito no Brasil).

Zheng afirma que, após o fim da guerra civil e a vitória dos comunistas, boa parte dos membros da legenda vinha da zona rural, onde os valores tradicionais e ligados ao patriarcado ainda estavam bastante vívidos. Foram os homens que lutaram no conflito os primeiros a ganhar cargos de maior importância na estrutura estatal, e, com o recrudescimento ideológico de Mao, a agenda feminista foi deixada de lado.

“No início da China comunista, essas feministas foram capazes de implementar uma série de leis e políticas para promover os direitos e os interesses das mulheres. Isso criou um tremendo progresso social para as chinesas, mas a partir de 1964 Mao resolveu se dedicar à luta de classes. A equidade de gênero então se perdeu”, diz Zheng.

A partir daí –e especialmente após o início da Revolução Cultural em 1966–, as feministas foram classificadas como “inimigas burguesas” e perderam terreno. A Federação Nacional de Mulheres da China, até então um dos mais importantes fóruns pela luta de pautas relacionadas às mulheres, cortou contato com grupos feministas independentes e se tornou cada vez mais dominada pelo Estado.

Mao morreu em 1976 e com ele, chegou ao fim a Revolução Cultural. A China passaria por um amplo período de reformas políticas e abertura econômica a partir de 1978, mas agora o problema era outro: virtualmente impedida de continuar militando, a primeira leva de feministas da revolução envelheceu e não conseguiu renovar os quadros.

“Algumas [feministas] retomaram seus cargos, mas não durou muito tempo, porque já estavam na idade de se aposentar. Então muitas daquelas mulheres que se filiaram em prol da libertação feminina, que escapavam de casamentos arranjados e abusos dos maridos já não tinham sucessoras”, relembra Zheng.

A professora afirma ainda que as reformas econômicas e o abandono parcial da economia planificada importou para a China as desigualdades de gênero próprias do capitalismo, criando disparidades salariais e promovendo homens, em vez de mulheres, a cargos de liderança. Tudo isso, explica ela, impacta na baixa representatividade feminina nas esferas de poder, uma situação que se tornou mais complicada sob o governo Xi.

“Xi foi o primeiro líder do partido que se atreveu a dizer que ‘o papel das mulheres na família é muito importante, é responsabilidade da mulher cuidar dos velhos e da família’. Nenhum líder comunista anterior, não importa o quão machista e patriarcal fosse, ousou fazer um discurso tão abertamente sexista. Porque eles sabiam que isso era politicamente incorreto”, pontua, mencionando que textos do partido têm reforçado “todas aquelas normas de gênero de Confúcio, que já têm mais de mil anos e enfatizam o papel da esposa e mãe virtuosa”.

Para Melissa Cambuhy, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), “estar no socialismo não significa superar contradições de gênero e raça”. Ela afirma que as mulheres foram centrais para a revolução chinesa, mas “só a luta política conquistará mudanças, porque a priori o poder continua com os homens”.

“Xi continua sendo homem, a despeito de ser líder, a despeito do socialismo. Existe algo de idealizado do que viria a ser o socialismo, como se fosse um paraíso, e isso é falso. O socialismo é um processo histórico em que a luta de classes, tanto contra bilionários como também no que se refere ao gênero e ao poder político, continua.”

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