China, Terra do Meio https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br Reportagens, análises geopolíticas e notícias de um dos mais importantes países do mundo: a China Fri, 19 Nov 2021 15:36:10 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Epopeia de exames e protocolos rígidos mostram política de Covid zero na China https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/11/19/epopeia-de-exames-e-protocolos-rigidos-revela-politica-de-covid-zero-na-china/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/11/19/epopeia-de-exames-e-protocolos-rigidos-revela-politica-de-covid-zero-na-china/#respond Fri, 19 Nov 2021 15:05:31 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/20211108_183730-300x215.jpg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=315 Desembarcar na China durante a pandemia de coronavírus parece uma distopia. Enquanto o resto do mundo começa a reabrir suas fronteiras para viagens não essenciais, os aeroportos chineses dão uma pista do quão preocupado o governo continua com a Covid-19: funcionários com trajes de proteção, fluxo de passageiros internacionais controlado por cordas e um procedimento cuidadoso que registra o celular de cada viajante. Foi assim que descobri um caso da doença no meu voo.

Saí de Guarulhos no último dia 6 de novembro rumo a Shanghai, mas a viagem para a China começa muito antes de entrar no avião. Virtualmente fechado desde o início de 2020, o país desenvolveu um complexo sistema de monitoramento pandêmico, essencial para a contenção da doença na bolha sanitária criada por Pequim.

Antes de sair do Brasil, é necessário enviar em uma plataforma do governo os resultados não só de um teste PCR, como já é praxe para diversas viagens internacionais, mas também de um exame de anticorpos IgM. A imunoglobulina é a primeira resposta do sistema imunológico após a exposição ao coronavírus e pode levar meses para desaparecer do organismo. Na prática, a exigência fez com que eu me isolasse semanas antes da viagem de fato, já que uma infecção, mesmo curada, impediria-me de embarcar.

Apenas voos diretos ou com uma escala são permitidos. E, na parada, mais uma exigência: os exames PCR e IgM têm de ser refeitos, e uma nova autorização para seguir viagem, solicitada. Poucos aeroportos no mundo têm centros de testagens conveniados com o consulado chinês local, e o preço dos testes supera facilmente a ordem de milhares de reais (parando em Zurique, como foi o meu caso, os exames custaram 340 francos, pouco mais de R$2300 com o IOF). Dadas as exigências, são poucos os assentos disponíveis, e as companhias aéreas que dispõem de voos com destino ao país vendem passagens a peso de ouro (para mim, algo na casa dos US$ 8 mil, cerca de R$ 44 mil).

Autorizado o embarque, cada passageiro recebe dois QR codes: o de alfândega e o de saúde. Os quadradinhos são escaneados dezenas de vezes, e o sistema de imigração do governo registra quem era e onde estava sentado cada viajante. Ao sair do avião, todos são encaminhados para uma nova rodada de testes PCR (coletado com material do nariz e da garganta). Concluído o procedimento, os passageiros são encaminhados a ônibus em grupos de 25 pessoas e enviados aleatoriamente a hotéis de quarentena, pagos com recursos próprios e de onde não poderão sair por ao menos 14 dias.

Dois dias depois de chegar à China, eu ainda sofria com o jet lag e cochilava quando um funcionário do hotel para onde fui enviado ligou para o meu quarto. “Senhor, encontraram casos de Covid no seu voo para Shanghai. Verifique o seu código de saúde e se prepare para o PCR amanhã pela manhã.” O sistema de registro de viajantes confirmava: alguém sentado até três fileiras da minha poltrona recebeu o diagnóstico de Covid logo no primeiro dia de quarentena e, por isso, todos estariam submetidos a uma vigilância mais rigorosa.

“O que acontece agora?”, perguntei ao funcionário. Ele me respondeu dizendo que era preciso “esperar para ver”. Colegas que passaram pela mesma situação contaram que todos seriam testados e, se houvesse a confirmação de algum caso, o infectado seria levado para isolamento em um hospital e por lá ficaria por ao menos 21 dias. Todos os outros passageiros seriam monitorados, e a contagem da quarentena começaria do zero se alguém sentado do seu lado ou imediatamente à sua frente tanto no avião quanto no ônibus rumo ao hotel também recebesse um resultado positivo.

Aplicativo do Conselho de Estado muda de cor quando um caso é confirmado no voo Reprodução/Arquivo pessoal

Na manhã seguinte, dois médicos cobertos dos pés à cabeça com trajes de proteção bateram na minha porta. Além de fazer o teste, fui orientado a assinar um termo em chinês que atestava ter sido informado do caso de Covid próximo a mim e no qual eu concordava com a minha nova rotina: checagens de temperatura todos os dias depois do café da manhã e do almoço e uma ligação no fim do dia para saber como estava a minha saúde.

Eu ainda seria submetido a novos testes no décimo e no 13º dia da quarentena, e só então seria liberado para fazer uma terceira semana de quarentena menos restritiva em outro hotel. Para esse período é necessário um novo código de saúde, desta vez emitido pela prefeitura da cidade e vinculado a um número de telefone local. O aplicativo rastreia a localização de todos os usuários 24 horas por dia e pode ficar amarelo ou vermelho caso haja contato próximo com outro caso de Covid nesse meio tempo.

Meu exame teve resultado negativo. Quando comentei com a médica que checava minha temperatura diariamente sobre a precisão do sistema, ela respondeu: “Não podemos deixar passar nenhum caso.”

Covid Zero

O rigoroso rastreio de contatos e a enorme burocracia para os poucos estrangeiros autorizados a entrar no país colocam os chineses em uma categoria à parte no combate à Covid. Embora tenha protestado quando o então presidente dos EUA Donald Trump decidiu banir voos da China logo nos primeiros meses desde o surto em Wuhan, Pequim seguiu a tendência mundial na sequência e fechou as fronteiras por tempo indeterminado. Quase dois anos depois, nada indica disposição para reverter a decisão em um futuro próximo.

Em setembro, a metrópole Guangzhou, no sul do país, inaugurou um enorme centro de quarentena para viajantes internacionais. Ao custo de R$ 1,4 bilhão, a estrutura ocupa uma área de 250 mil metros quadrados, tem capacidade para receber até 5.074 viajantes e conta com um avançado sistema de inteligência artificial capaz de medir constantemente a temperatura dos quarentenados, além de robôs para a entrega de comida e de monitores para telemedicina. Um investimento que só se justifica se planejado para ser duradouro.

A preocupação é mais que sanitária. Quando conseguiu controlar o surto da doença em Wuhan, a China logo viu disparar os casos de Covid mundo afora. Fechada, usou o sucesso no combate à pandemia para fortalecer a credibilidade do governo enquanto a mídia estatal descrevia cenas apocalípticas nos hospitais de Brasil, Índia e EUA. O resultado na moral coletiva foi imediato, e a população se recusa a conviver com o vírus.

Reverter os efeitos da propaganda oficial não é tarefa simples, e o governo não tem pressa. No radar, as preocupações mais imediatas estão em garantir a realização dos Jogos Olímpicos de Inverno em fevereiro e assegurar que Xi Jinping assuma um terceiro mandato de cinco anos em novembro de 2022 sem crises domésticas para lidar ao mesmo tempo.

Isso não significa que o Partido Comunista não esteja atento à necessidade de reabrir o país. Em agosto, o epidemiologista Zhong Nanshan, um dos principais conselheiros do governo na resposta à Covid e famoso por ter ajudado a combater a crise da Sars em 2003, destacou as condições necessárias para que Pequim considere flexibilizar a entrada de estrangeiros. Em uma rara declaração pública, disse que o governo só vai considerar a reabertura quando o país atingir 85% da população totalmente vacinada, “a imunização avançar internacionalmente e a transmissão no exterior atingir níveis relativamente baixos”.

Saudade de casa

Enquanto a flexibilização não ocorre, brasileiros que vivem na China convivem com ansiedade, preocupação e saudade da família. É o caso da guia turística Dani Tassy. Na China desde 2014, ela estava viajando com um grupo de brasileiros quando o surto de Sars-Cov-2 estourou em Wuhan. Tassy tinha esperanças de que a situação se normalizasse em poucos meses e, ao contrário de outros amigos estrangeiros, resolveu não sair.

O impacto da decisão foi emocional e financeiro, já que o número de clientes desabou após o início das restrições. Ela afirma esperar uma melhora nas condições sanitárias para que as fronteiras reabram o quanto antes, mas já pensa em uma data limite.

“Sair da China para quem tem uma vida aqui é arriscado porque não sabemos quando ou se poderemos voltar. Passei por momentos de grande ansiedade, de me questionar se valeu a pena ter ficado. Meu irmão se casou nesse meio tempo, e eu perdi uma prima para a Covid no Brasil. Penso que, se daqui a um ano as coisas não mudarem, vou me arriscar e voltar”, diz ela, que desde janeiro de 2019 não vê a mãe, que vive no interior de São Paulo.

Dani Tassy trabalha como guia na China e faz planos de voltar ao Brasil em 2022 caso as fronteiras não reabram Dani Tassy/Arquivo pessoal

Se para quem já está no país a decisão de permanecer fica cada vez mais custosa, quem precisa entrar também pondera prós e contras. O analista ambiental Pedro Campany, que chegou à China com a mulher e o filho de 11 anos em março para trabalhar, afirma que teve de pensar bastante antes de aceitar a vaga.

“Foi um projeto de família, e no final escolhemos o que seria melhor não só para nós, mas para o nosso filho. Mas a distância complica. Minha mãe sempre me pergunta se vou ficar aqui de vez e quando vou visitar o Brasil. Na semana passada a família se reuniu para um casamento, fizeram uma chamada de vídeo e foi difícil. Não é a mesma coisa.”

E de volta ao meu quarto de quarentena

Teste negativo, posso respirar aliviado por hora. A primeira fase da minha quarentena termina na próxima segunda-feira (22), mas o processo ainda está longe de acabar. Daqui, sigo para um novo hotel, onde ficarei de “observação” por mais sete dias. Embora possa circular em Shanghai, a recomendação é fazer o estritamente essencial nesse período.

Depois de mais outros dois testes de Covid, poderei então embarcar para Pequim, onde mais uma semana de observação me espera. O cuidado extremo, talvez até exagerado, prova: quando se trata da pandemia, a China não está disposta a pagar para ver.

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Com submarinos nucleares, Austrália ‘tomou um lado’ nas disputas entre China e EUA, diz especialista https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/09/27/com-submarinos-nucleares-australia-tomou-um-lado-nas-disputas-entre-china-e-eua-diz-especialista/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/09/27/com-submarinos-nucleares-australia-tomou-um-lado-nas-disputas-entre-china-e-eua-diz-especialista/#respond Mon, 27 Sep 2021 21:05:56 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/4c39bdfbd17b1559b3bd09eac8547935cf40c8ae100cf2854777446928e02558_614b9ca29e806-300x215.jpeg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=279 Professora na Universidade Monash e uma das maiores especialistas australianas em segurança marítima internacional, Maria Rublee passou as últimas semanas ocupada. Ela foi uma das primeiras acadêmicas do país a expressar críticas ao Aukus, o pacto militar firmado por Canberra com o Reino Unido e os Estados Unidos e que exasperou o governo comunista em Pequim.

Maior compromisso militar assinado entre os três países desde a Segunda Guerra, o Aukus vai permitir à Austrália montar sua primeira frota de submarinos a propulsão nuclear, além de prever a transferência de tecnologia quântica, inteligência artificial e técnicas de proteção cibernética.

O anúncio pegou diplomatas da região de surpresa. Além de sinalizar o que pode ser o início de uma grande marinha com propulsão nuclear global, as intenções dos países signatários são claras: conter a China. Os submarinos ampliarão o alcance australiano nas águas regionais, oferecendo um fator de dissuasão aos chineses, que ampliam a presença de sua Marinha com a construção de bases em ilhas artificiais.

À rede de TV americana CBS o premiê australiano, Scott Morrison, assumiu que o mar do sul da China, região reivindicada por Pequim e disputada por outros países parceiros dos Estados Unidos na região, será o foco das embarcações. “Estamos falando sobre as águas internacionais, de um Indo-Pacífico livre e aberto. O direito marítimo internacional importa para nós e para todos os países da região, assim como a capacidade de operar onde todos os países deveriam ser capazes de operar”, afirmou.

Para Rublee, a Austrália conseguiu sustentar por muitos anos o equilíbrio entre as parcerias comerciais com os chineses e a proximidade política e cultural com americanos e britânicos. O Aukus pode sinalizar o fim dessa postura. Na entrevista, a especialista detalha qual é o potencial perigo do pacto, não apenas para os chineses, mas também para os esforços na contenção de armamento nuclear mundial.

Folha: As reações mais firmes em relação a este acordo vieram de Pequim e de Paris, este último por motivos que discutiremos a seguir. Porém, muitos vizinhos no sudeste asiático, países que o Ocidente tenta seduzir para conter a China, também não gostaram do anúncio. Como o Aukus pode prejudicar a relação australiana com os vizinhos?

Maria Rublee: Existem diferentes tipos de vizinhos. Tem a Nova Zelândia, o vizinho mais próximo, tanto geograficamente, quanto culturalmente e diplomático. Eles já disseram que submarinos movidos a energia nuclear não serão permitidos em águas neozelandesas. Isso é um problema e significa que teremos problemas com questões como interoperabilidade. A Nova Zelândia não tem uma frota de submarinos, mas ainda assim, a cooperação naval entre os dois países será prejudicada.

Então você tem os países do sudeste asiático e eles não estão entusiasmados com isso por alguns motivos. Primeiro, eles argumentam que, muitas vezes, conflitos locais se tornam mais perigosos quando você envolve grandes potências, e é quase como se toda a região se tornasse um playground para esses países poderosos. Não há armas nucleares nesses submarinos, é uma usina nuclear dentro deles. Mesmo assim, houve comentários oficiais de preocupação de pessoas dentro do governo da Indonésia e do governo da Malásia.

Temos uma zona livre de armas nucleares nesta área, mas ela não proíbe os países com armas nucleares de transportá-las através desta zona. E, de fato, provavelmente veremos uma base de submarinos na costa oeste da Austrália que hospedará submarinos americanos e britânicos com armas nucleares.

F: Este acordo representa risco imediato para a China?

MR: Para a China, é a Austrália subitamente recebendo oito novos submarinos nucleares. Isso não dará aos australianos poder de negação marítima [termo militar que descreve tentativas de negar a capacidade do inimigo de usar o mar, sem necessariamente tentar controlar o mar para seu próprio uso], já que seriam necessários ao menos 12 submarinos para isso. Certamente, para a China não representará um problema maior do que os submarinos regulares que temos, mas é terá grande magnitude porque indica que a Austrália tomou uma decisão. Por muito tempo, a Austrália viveu um dilema do tipo “a gente vai se juntar à China, nosso parceiro econômico? Ou estaremos com os EUA, parceiro cultural e diplomático?”. Estamos claramente nos movendo em direção ao lado ocidental.

Para os chineses é uma grande preocupação, porque eles se veem como uma grande potência em crescimento e não querem um convite dourado para os Estados Unidos virem para o que eles veem como seu quintal. Além disso, estaremos recebendo também os britânicos e um parlamentar britânico do Comitê de Relações Exteriores já tuitou que “isso [o Aukus] nos dá uma doca permanente para nossos barcos na área”. No contexto do mar do Sul da China, isso significa dizer a Pequim que vamos nos envolver mais com o Ocidente, não menos.

F: A senhora mencionou o fato da Austrália estar em uma zona não nuclear, com a China acusando Canberra de violar compromissos assumidos em tratados de não proliferação. As três partes do Aukus já esclareceram que os submarinos apenas movidos por fissão nuclear, mas não carregarão mísseis balísticos. Essa garantia será o suficiente para acalmar os nervos em Pequim? Pode haver uma corrida armamentista nuclear na região?

MR: A Austrália certamente não infringirá o tratado de não proliferação, não com um submarino de propulsão nuclear sobre o qual temos direito previsto no texto. Dito isso, temos perguntas sobre as intenções da Austrália no futuro. A grande questão aqui é quem fornecerá o urânio altamente enriquecido que alimenta esses submarinos nucleares. Dentro deles você tem uma mini usina de energia nuclear que não precisa ser reabastecida durante a vida útil da embarcação.

Mas se a Austrália disser “queremos fornecer o urânio altamente enriquecido que vai para esses submarinos nucleares”, então não apenas a China estará em alerta, mas países em todo o mundo porque se você tem a capacidade de enriquecer urânio e o poder de fabricar armas nucleares. É o mesmo equipamento, você apenas o executa por mais tempo. Realmente, seria uma coisa terrível fazer isso, não queremos ver a disseminação de instalações de enriquecimento ao redor do mundo que tornariam mais difícil a redução de armas nucleares.

F: Os franceses ficaram irritados com a decisão, já que tinham assinado um acordo para construir 12 submarinos encomendados por Canberra. É possível que a Austrália esteja se afastando dos parceiros da União Europeia nessa disputa geopolítica com a China, passando a depender mais de seus parceiros militares tradicionais como os Estados Unidos e o Reino Unido?

MR: Bem, essa é certamente a direção que o atual poderoso primeiro-ministro traçou. Absolutamente. Contudo, do ponto de vista doméstico, não creio que haja vontade de abandonar a Europa para se alinhar inteiramente com os Estados Unidos. Há um compromisso muito grande com os americanos, mas ele também existe para a Europa. É muito lamentável a maneira como isso foi tratado com os franceses e ficou claro que eles foram avisados de última hora. No entanto, o contrato francês nunca foi um bom negócio porque eles estavam pegando um submarino com propulsão nuclear e o redesenhando, o que custaria muito dinheiro.

F: No curto prazo, como a senhora vê a resposta chinesa ao Aukus? Pequim reclamará apenas pelos canais diplomáticos ou embarcações chinesas podem vir a realizar exercícios militares em águas internacionais próximas à Austrália como retaliação?

MR: É muito difícil saber o que os chineses farão. A China se tornou muito mais agressiva ultimamente nos últimos dois anos, mas duvido que eles façam algo. No que tange a exercícios militares, tudo o que vai conseguirão se seguirem esse caminho é influenciar a opinião pública. Se os chineses quiserem que o Aukus prospere, basta provocar a Austrália próximo de suas águas porque isso basicamente fará a população doméstica dizer “ok, a China está sendo superagressiva, agora realmente precisamos do Aukus”. Meu palpite é que eles sabem disso e haverá muita conversa, mas não acho que irão muito além disso.

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‘11 de Setembro chinês’ moldou combate de Pequim ao terror https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/09/09/11-de-setembro-chines-moldou-combate-de-pequim-ao-terror/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/09/09/11-de-setembro-chines-moldou-combate-de-pequim-ao-terror/#respond Thu, 09 Sep 2021 18:57:14 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/d74e7eacfc8d9527eb6e9f3406950b9d06a5d148db757003c2ebeac1bba583ff_5ae2d17dbc0fc-300x215.jpeg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=267 Era noite de sábado, 1º de março de 2014 em Kunming, capital da província de Yunnan, quando um grupo de seis homens e duas mulheres invadiu a estação ferroviária da cidade

Com os rostos parcialmente cobertos, eles sacaram facas e espadas, iniciando um massacre. Durante cerca de dez minutos, o bando esfaqueou quem estivesse pela frente, sem distinção de gênero ou idade. Muitas pessoas conseguiram correr, mas as que caíam ou tinham problemas de mobilidade eram alcançadas e atacadas. 

A polícia chegou rapidamente ao local, neutralizando parte dos terroristas e prendendo os demais depois, mas o saldo da tragédia foi amargo: 31 mortos e 143 feridos.

Enquanto lidava com o luto e a estupefação, o país logo soube pela imprensa local dos primeiros detalhes do crime, como o de que os criminosos mortos pelas forças de segurança carregavam bandeiras do Turquestão Oriental. O nome faz referência à forma como separatistas chineses se referem a Xinjiang, e o incidente marcou a primeira investida violenta da minoria muçulmana uigur fora das fronteiras da província a oeste da China.

Atualmente detentora do status de região autônoma, Xinjiang tem uma história complicada. Ao longo de séculos, foi habitada por turcos nômades, que se misturaram a etnias da Ásia Central e Oriental. Em 1759, a área foi conquistada pela primeira vez pelo Império Qing, que perdeu o controle da região após levantes armados liderados por locais. 

Em 1877, voltou a ser dominada pelo imperador, mas o controle central se esvaiu com a queda do império, em 1911, abrindo espaço para o fortalecimento de senhores da guerra e a fundação de um Estado que contou apenas com breve apoio da União Soviética. Ao ganhar a guerra civil e assumir o controle da China, os comunistas conseguiram sedimentar a anexação ao próprio território.

Uigures não se parecem com os chineses da etnia han. Seus olhos não são puxados, o formato do rosto é semelhante ao dos turcos e o idioma local não guarda nenhuma semelhança com o mandarim padrão, falado pela maior parte do país. 

A despeito da anexação definitiva ao território continental chinês, o separatismo nunca perdeu força, e pequenos ataques terroristas eram comuns na região. Kunming foi um ponto fora da curva e a constatação, pela maioria dos chineses han, que o terrorismo, problema tão comum na Europa e nos Estados Unidos, também podia fazer vítimas na China.

Professor de política chinesa e pesquisador da dinâmica terrorista na China na Universidade de Kent, Pak Kuen Lee afirma que o ataque em Kunming foi “um divisor de águas”, causando “enorme impacto psicológico” entre os chineses. 

Embora o número de mortos tenha sido consideravelmente menor, não demorou até que a tragédia passasse a ser chamada por autoridades e jornalistas locais por uma analogia funesta: “o 11 de Setembro chinês”.

Ainda que evidências indiquem apoio ao menos indireto de radicais estrangeiros, nenhum grupo jamais assumiu a autoria do ataque. O governo chinês, por sua vez, responsabilizou o Movimento de Independência do Turquestão Oriental (ETIM, na sigla em inglês), uma suposta organização terrorista cuja existência nunca foi de fato comprovada.

“Para avaliar se a comparação é válida, é preciso estabelecer se houve um ataque terrorista coordenado, como foi com a Al Qaeda [no 11 de Setembro]. Especialistas fora da China são céticos quanto às alegações, e é mais provável que militantes uigures tenham colaborado com o Talibã e outros grupos radicais menores no Afeganistão e no Paquistão”, diz Lee.

“Como a guerra ao terror chinesa é, supostamente, contra o ETIM, há uma diferença marcante: as lutas chinesas contra o terrorismo são locais, enquanto os americanos têm ambições mais globais.”

Diante de uma pretensa atuação de uma organização terrorista dentro do país, a China começou a implementar em 2017 uma série de medidas no combate ao radicalismo islâmico. Desde Kunming, não houve nenhum outro ataque de grandes dimensões em território chinês, mas isso não impediu Pequim de estruturar uma robusta campanha destinada a controlar muçulmanos em Xinjiang.

Sob acusações de violação dos direitos humanos e de limpeza étnica, o país internou compulsoriamente milhões de uigures, construindo campos em que eles recebem aulas de mandarim, treinamento vocacional e educação patriótica. A prática religiosa é monitorada de perto e deve passar por aprovação prévia de funcionários do PC Chinês mesmo depois que internos deixam os chamados campos de reeducação.

O professor Lee diz que, ao classificar as ações como contraterrorismo, a China busca normalizar as decisões tomadas em Xinjiang e mostrar que não há diferenças significativas quanto às práticas já adotadas por outros países. “No cerne do problema está que os chineses [da etnia] han não se sentem seguros até que as minorias étnicas dentro da China sejam suficientemente ‘sinicizadas'”, ou seja, mais próximas da cultura han, pontua ele.

Professor de economia política internacional da Unesp, o sinólogo Marcos Cordeiro Pires discorda. Para ele, a China tradicionalmente conviveu bem com minorias de religiões diferentes desde a época do império. Alguns conflitos na Ásia Central, porém, reviveram o separatismo entre militantes radicais chineses.

“O grande despertar para o levante muçulmano na Ásia Central foram as guerras da Chechênia [1994-1996 e 1999-2000], com ativistas sunitas atuando próximos de povos com ascendência turca, como é o caso de Xinjiang. E 2014 coincidiu com o ano da ascensão do Estado Islâmico, também um grupo sunita responsável por internacionalizar práticas radicais entre muçulmanos de várias partes do mundo”, relembra Pires.

Ele defende que não há indícios sólidos para fundamentar acusações de “genocídio cultural” e que mesmo as campanhas de reeducação não são diferentes do padrão adotado em vários países. Para o professor, o currículo escolar em todas as partes do mundo sempre buscou criar “coesão e desenvolvimento dos cidadãos”, e as “táticas chinesas se mostram mais efetivas que a força bruta em conflitos militares como no Iêmen”.

“No início dos anos 2000, quando o atentado em Nova York aconteceu, a China tinha cerca de um quarto da renda per capita que tem hoje e não dispunha de potência para avançar políticas externas, preocupando-se mais em fortalecer o crescimento econômico. Episódios violentos fora da província de Xinjiang deram um senso de urgência ao assunto”, destaca.

Agora, o desafio mais premente, ambos os professores concordam, será administrar as relações com o Talibã no Afeganistão, país com o qual a China compartilha um pequeno trecho de fronteira. Para Lee, Pequim identificou relações entre os uigures e a facção. 

“A questão aqui não é se a China pode isolar Xinjiang dos grupos radicais –porque isso implica comprovar a existência, mas se o Talibã honrará sua promessa [de comedimento]. O novo regime é mais moderado do que o de 20 anos atrás, como Pequim espera ou deseja?”

Pires defende que “terroristas só existem enquanto lutam pelo poder; ao chegar ao governo, são geralmente oficiais e burocratas”. Partindo desse pressuposto, o sinólogo afirma que, por meio da Iniciativa Cinturão e Rota, o maior programa de projeção de influência econômica e política da era Xi Jinping, a China “pode ser capaz de reinserir e moderar o Afeganistão”.

“As relações estáveis dos chineses com Cabul certamente podem ajudar a criar garantias contra o financiamento de uigures radicais, evitando, em última instância, a insurgência islâmica radical dentro da própria China continental.”

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Queda de Cabul repercute na imprensa chinesa e representa xadrez geopolítico para Pequim https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/08/16/queda-de-cabul-repercute-na-imprensa-chinesa-e-representa-xadrez-geopolitico-para-pequim/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/08/16/queda-de-cabul-repercute-na-imprensa-chinesa-e-representa-xadrez-geopolitico-para-pequim/#respond Mon, 16 Aug 2021 20:39:37 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/ffcf2721672a8db710ea072d6db688297766d64a4e330a26408148b60ff8f4d3_6101356ce3621-300x215.jpeg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=254 A tomada de Cabul pelo grupo fundamentalista Taleban repercutiu com força na imprensa e nas redes sociais chinesas. Encabeçado pelas imagens de um helicóptero deixando a embaixada dos Estados Unidos no Afeganistão e pela comparação com cena similar em Saigon –atual Ho Chi Minh, capital do Vietnã–, em 1975, o tópico sobre a crise afegã no Weibo, espécie de Twitter chinês, atraiu mais de 33 milhões de postagens.

“Este é, sem dúvidas, um momento extremamente embaraçoso para os EUA e um duro golpe para o poder americano”, escreveu o jornal oficial Diário do Povo, conhecido como a “voz do Partido Comunista”. “Antes da queda de Saigon, o presidente sul-vietnamita Nguyen Van Thieu denunciou os Estados Unidos por sua traição, [chamando-os] de desumanos, irresponsáveis e não confiáveis. A mesma cena está agora se repetindo no Afeganistão.”

O tom nacionalista dos textos produzidos pela mídia estatal se refletiu nos fóruns virtuais. Enquanto as cenas de desespero dos afegãos corriam o mundo, comentários destacavam a rápida incursão militar dos fundamentalistas como uma humilhação aos americanos.

“A ascensão e a queda do status de uma potência mundial não parecem depender da economia, mas do resultado da guerra”, escreveu Chen Ping, professor da Universidade de Fudan e celebridade virtual, com quase 4 milhões de seguidores. Outro internauta fez um paralelo entre a situação no Afeganistão e a forma como os americanos lidaram com a pandemia de coronavírus, “novamente se tornando uma piada mundial”, enquanto outra postagem usava as fotos da evacuação da embaixada como um símbolo da “derrocada do imperialismo e dos reacionários, ambos tigres de papel”.

A maneira como a imprensa chinesa reagiu aos acontecimentos recentes no país vizinho não é despropositada. Autor do livro “The China-Pakistan Axis: Asia’s New Geopolitics” (O eixo China-Paquistão: a nova geopolítica da Ásia, inédito no Brasil), Andrew Small afirma que Pequim provavelmente usará o caos em Cabul como um exemplo aos seus vizinhos de que os americanos não são parceiros confiáveis.

“Certamente as imagens do helicóptero deixando uma cidade arrasada e tomada pelo Taleban são um símbolo de uma guerra longa e infrutífera. É de certa forma esperado que, a despeito da instabilidade causada pela queda de Cabul, Pequim faça paralelos com o que aconteceu quando os americanos perderam a guerra no Vietnã. Muitos veículos reproduziram uma entrevista do [secretário de Estado] Antony Blinken negando a derrota, enquanto as pessoas tentavam desesperadamente deixar a cidade sitiada”, analisa o pesquisador sênior do German Marshall Fund.

As semelhanças com o Vietnã em 1975, porém, param por aí. Para Small, os chineses agora precisarão se preocupar com um delicado xadrez geopolítico que traz instabilidade às suas fronteiras e ameaça interesses econômicos.

A China se adiantou à queda do governo afegão apoiado por Washington e recebeu no mês passado em Tianjin, a 110 quilômetros da capital, uma delegação encabeçada por Abdul Ghani Baradar, cofundador do Taleban. Logo após a fuga do presidente Ashraf Ghani, diplomatas chineses declararam ter a intenção de manter “relações amistosas” com o novo governo. A embaixada em Cabul não foi fechada e cidadãos chineses tampouco foram retirados do país, embora a representação diplomática tenha divulgado uma nota pedindo “muita atenção à situação de segurança”.

Especulações de que o reconhecimento da legitimidade do Taleban foram motivadas por interesses financeiros chineses na região foram levantadas pela imprensa ocidental. Small, entretanto, afirma que a postura pragmática da China denota preocupações com a segurança doméstica, e não uma tentativa imediata de lucrar com a situação. Ele também diz não acreditar que a China vá ocupar o vácuo de poder deixado pelos EUA, a exemplo do que aconteceu na Síria.

“A Rússia já tinha presença militar na Síria e substituiu os EUA quando as tropas americanas deixaram a região. Não é o caso dos chineses no Afeganistão, e não creio que a China esteja interessada em expandir a sua Iniciativa de Cinturão e Rota para lá. A estratégia parece ser a de manter o Afeganistão como um Estado tampão, impedindo que mantenham laços com grupos extremistas na região de Xinjiang, por exemplo. Pequim me parece relutante e provavelmente não deve colocar dinheiro no país imediatamente”, diz.

Além das agitações fronteiriças, o Afeganistão também representa uma peça importante em um quadro mais amplo e delicado: as relações chinesas com o Paquistão e a Índia.

Após os ataques do 11 de Setembro, os paquistaneses foram acusados por Washington de financiar atividades terroristas do Taleban e da Al Qaeda. Islamabad é uma parceira de longa data de Pequim e inimiga histórica dos indianos, mas a presença de milícias fundamentalistas apoiadas pelo Paquistão no território disputado da Caxemira tende a criar uma “delicada situação de segurança estratégica local” que alarma os dois países mais populosos do mundo.

Para Small, a Índia provavelmente precisará analisar cuidadosamente os riscos do Taleban e, mesmo com as desavenças com os chineses, deve se aproximar de Pequim na cobrança por moderação.

“As relações entre Índia e China estão delicadas neste momento, com estranhamentos militares na fronteira. Mas os dois países compartilham preocupações semelhantes quanto à insurgência de terroristas no sul da Ásia, já que nove trabalhadores chineses foram mortos no mês passado em um ataque financiado por terroristas afegãos na cidade paquistanesa de Dasu. Assim, é provável que o Paquistão seja dragado outra vez para a crise e sofra pressões de ambos os lados.”

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Brasil se consolida como principal destino sul-americano de investimentos chineses, mostra estudo inédito https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/08/05/brasil-se-consolida-como-principal-destino-sul-americano-de-investimentos-chineses-mostra-estudo-inedito/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/08/05/brasil-se-consolida-como-principal-destino-sul-americano-de-investimentos-chineses-mostra-estudo-inedito/#respond Thu, 05 Aug 2021 12:49:33 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/49059993546_192401c9bf_o-300x215.jpg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=240 Mesmo com a retórica diplomática agressiva em Brasília, os investimentos chineses no Brasil cresceram 117% em 2019. Sob os efeitos da pandemia no ano passado, os números tiveram retração (US$ 7,3 bilhões no ano anterior para US$ 1,9 bilhão, queda de 74%), mas não o suficiente para ameaçar o posto de principal destino dos investimento na América do Sul (47% de todos os aportes), somando US$ 66,1 bilhões na série história 2007-2020. Os números foram revelados por uma pesquisa inédita do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), publicada nesta quinta (5).

O levantamento mostra que, desde 2007, empresas chinesas já efetivaram 176 empreendimentos no Brasil, 31% deles no setor de energia elétrica. State Grid e China Three Gorges, duas gigantes estatais na área de eletricidade, mantêm por aqui suas maiores fatias de investimento fora da China, com 48% e 60% respectivamente.  

Autor do estudo, o pesquisador e diretor de conteúdo do CEBC, Túlio Cariello, diz que a atração de aportes expressivos no setor elétrico do Brasil é uma combinação de fatores: a tradição chinesa em investimentos na área de infraestrutura, a necessidade de crescimento dessas estatais para além da fronteiras nacionais e um ambiente de negócios mais estável, se comparado com outros países em desenvolvimento.

“A necessidade de internacionalização dessas empresas chinesas coincidiu com um momento em que o Brasil abria o seu setor de energia elétrica. Óbvio que o Brasil tem apresentado indicadores econômicos irregulares, mas, se comparado à América Latina ou a África de modo geral, aqui energia é uma área estável, com bons engenheiros e marco regulatório maduro. São fatores decisivos nessa atração”, diz.

O pesquisador explica que mesmo com a queda nos aportes do ano passado —tendência mundial causada pela Covid-19, o setor elétrico brasileiro foi o destino de 97% dos investimentos chineses confirmados no país. São estatísticas tão superiores que, na opinião dele, “é um caso que precisa ser visto à parte dos demais empreendimentos”.

“A China não está sozinha. Há investimentos parecidos da Espanha, da Alemanha e da França, por exemplo. O que chama atenção aqui é que os chineses se apresentam como competitivos não só pelo capital, mas também pelo domínio de tecnologias que não são dominadas por muitos países como o UHV [ultra-alta tensão, capaz de otimizar a distribuição de energia elétrica a longas distâncias], o que é muito benéfico para modernizar nossa matriz energética”, detalha.

Logo atrás da energia, a indústria manufatureira (que abarca os setores químico, de fabricação de maquinário e celulose) se destaca com 28% dos projetos confirmados. Frequentemente citados como essenciais à segurança alimentar chinesa, a agricultura e pecuária ficam com 7%, com destaque para a entrada da gigante estatal Cofco que mantém atividades da origem até o transporte de soja e cana-de-açúcar no Brasil.

Ataques à China não diminuíram apetite chinês

Com o início da pandemia, 2019 foi um ano especialmente tenso em termos diplomáticos para as relações sino-brasileiras. O deputado federal e presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, Eduardo Bolsonaro, protagonizou brigas com o embaixador chinês, Yang Wanming, enquanto membros do gabinete ministerial e o próprio presidente Jair Bolsonaro acusaram a China de “guerra biológica”. Mesmo assim, os volumes aportados pelos chineses no Brasil têm se mantido em trajetória ascendente desde o início do atual governo. Para Cariello, os dados mostram que o pragmatismo e o pensamento de longo prazo da China deram provas de resiliência e devem resistir às rusgas no curto prazo.

“Muitos desses investimentos começaram há tempos, né? Eu realmente não consigo vê-los [os chineses] pisando no freio, não acho que empresa chinesa que esteja construindo uma linha de transmissão no Brasil agora pare a obra porque o Bolsonaro falou alguma coisa ruim sobre a China. O que vale no final das contas para o mercado, na China e no resto do mundo, é o lucro”, prevê Cariello, acrescentando que dados de 2021, embora não consolidados, mostram que empresas chinesas continuam levando leilões para administração de usinas e linhas de transmissão.

Mais maduro e confortável com a legislação brasileira, o investidor chinês já se propõe a empreender do zero, construindo fábricas e montando novas operações no país. De acordo com o CEBC, fusões e aquisições (chamadas de “brownfields”) ainda representam 70% de todos os aportes no Brasil desde 2007, mas há mudanças significativas quando se analisam os dados referentes aos projetos em andamento: 48% deles são “greenfield”, ou seja, totalmente novos. Só essa fatia responde pela geração de 34,5 mil empregos diretos, enquanto os 40% em “brownfields” mantiveram os postos de outros 140,1 mil. Os outros 12% correspondem a joint ventures.

Com a expansão da fronteira tecnológica na China, Cariello acredita que há agora uma nova oportunidade se formando para os chineses no Brasil: a tecnologia de ponta. Com isso, deve se tornar mais comum ver as marcas de lá em áreas como a telefonia, internet das coisas, veículos elétricos e autônomos e inteligência artificial.

“A Huawei, que é líder na tecnologia 5G no mundo, já está em território nacional há bastante tempo e deve ganhar mercado, mesmo com as dificuldades políticas envolvidas no leilão. Para várias outras áreas, o Brasil será um mercado interessante. Há um elemento cultural envolvido pelo fato do brasileiro gostar de redes sociais, de games, troca bastante de celular e o mercado de aplicativos aqui é grande. Então é o setor a se acompanhar daqui para frente.”

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‘Governo Biden não tem estratégia para conter a China’, diz famoso ex-embaixador de Singapura https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/07/29/governo-biden-nao-tem-estrategia-para-conter-a-china-diz-famoso-ex-embaixador-de-singapura/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/07/29/governo-biden-nao-tem-estrategia-para-conter-a-china-diz-famoso-ex-embaixador-de-singapura/#respond Thu, 29 Jul 2021 13:30:54 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/KishoreMahbubani_Arquivo-pessoal-300x215.jpg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=224 De perfil sereno e voz comedida próprios de quem construiu a vida na diplomacia, Kishore Mahbubani é o tipo de intelectual que costuma ser consenso mesmo em lados antagônicos. Ex-embaixador de Singapura, com mais de 30 anos na chancelaria do país (incluindo uma década na ONU) e outros 15 na academia, construiu fama por ser um dos mais notáveis analistas da conjuntura geopolítica asiática.

É valendo-se da longa experiência a serviço das relações internacionais que o singapurense se aventura a tentar destrinchar um dos temas mais espinhosos na diplomacia atual: o futuro da relação sino-americana e como ela deve impactar o mundo nas próximas décadas. Em “A China Venceu?” (Intrínseca, 368 páginas), lançado no Brasil nesta semana, Mahbubani destrincha, ponto a ponto, os principais entraves à cooperação entre chineses e americanos.

Como quem escreve um telegrama a um Ministério das Relações Exteriores e com as credenciais de quem acompanha o desenrolar dos eventos sem ser, necessariamente, integrante de nenhum dos lados, o professor escreveu o que ele próprio define como “um presente para os Estados Unidos” e um lembrete a Washington de que “o mundo mudou”.

Em entrevista à Folha, Mahbubani expande os temas do livro, faz previsões sobre como devem se desenrolar os principais problemas entre a China e o Ocidente e um alerta ao Brasil: na briga entre as duas potências, ele diz que Brasília deveria anunciar neutralidade de antemão e se eximir de tomar lado se quiser preservar seus próprios interesses nacionais.

Folha: Um documento produzido pelo Atlantic Council [tradicional think tank americano] inspirado na estratégia americana para a Guerra Fria sugere que, se os EUA quiserem conter a China, devem tentar atrair a Rússia para o lado americano, o que seria muito difícil em termos de opinião pública. Como os EUA devem equacionar essas divergências internas com seus objetivos geopolíticos em relação a Pequim?

Kishore Mahbubani: Os americanos não conseguem entender que o mundo mudou fundamentalmente. Não é só sobre a China, é o fim da era de dominação ocidental da história mundial. E quando [Joe] Biden quer enfrentar a China, o que faz? Ele ressuscita o G7, um clube do passado que dificilmente vai saber lidar com um desafio futuro. Os EUA não conseguem nem mesmo conceber a possibilidade de que qualquer potência possa se tornar mais forte do que eles. Foram o número 1 por 130 anos e provavelmente a sociedade mais bem-sucedida que já vimos na história da humanidade, mas a história também nos ensina que você não pode ser o número 1 para sempre, certo? Os EUA têm um quarto da população da China e apenas 250 anos, enquanto a China tem 5.000. Certamente é possível que a China se torne maior que os EUA.

F: O senhor mencionou em seu livro que, como a dominação dos EUA na Europa, é uma anomalia na história.

KM: É uma anomalia, mas, novamente, os americanos não podem aceitar isso. E para eles, o importante não é só se aliar à Rússia, é a necessidade de mudança total de mentalidade. O maior medo da Rússia não vai ser a Europa. Quer dizer, os europeus são tão pacíficos que não vejo a Europa caminhando para uma guerra, mas a China é um desafio real para eles. Eles têm a maior fronteira com a China. Os EUA poderiam tentar serem habilidosos e possivelmente tentar atrair a Rússia, mas, infelizmente, os americanos passaram pelo menos 30 anos humilhando a Rússia. Então a razão pela qual os EUA estão tendo tantos problemas para lidar com este novo desafio na China é porque não entenderam que cometeram erros fundamentais. E na verdade, nesse sentido, meu livro é um presente para os EUA, ao tentar dizer a eles “ei, o mundo mudou e você deve mudar também”.

F: Pelo jeito que o senhor fala, parece que essa oportunidade com a Rússia já se perdeu. Mesmo que os EUA queiram se envolver com a Rússia, não será fácil para Vladimir Putin virar a opinião pública e tentar cooperar com os EUA contra a China….

KM: Acho que pode ser difícil para Vladimir Putin, porque o Ocidente o demonizou muito. Sabe, depois de demonizar tanto alguém, é muito difícil se comprometer. A razão pela qual eu coloquei a Crimeia para ilustrar os erros estratégicos dos EUA no livro é porque os americanos ameaçaram expandir a Otan para a Ucrânia. A Ucrânia é tão importante em termos de consciência russa, de compreensão russa, que quando os EUA tentaram humilhar a Rússia na Ucrânia, eu não entendi nada. E de muitas maneiras a Ucrânia poderia ter sido salva se funcionasse como uma espécie de Estado-tampão, ao invés de membro da Otan, como tentaram fazer.

F: Falando em G7, uma das principais viagens que Biden fez nos primeiros meses na Presidência foi participar da cúpula do grupo, quando anunciaram a intenção em criar um fundo de crédito para infraestrutura nos países em desenvolvimento, e assim contrapor a Iniciativa de Cinturão e Rota [informalmente conhecida como “nova rota da seda chinesa”]. Até que ponto isso será eficaz para lidar com os países africanos e asiáticos?

KM: Bem, acho que se o presidente Biden deseja fornecer uma fonte alternativa de financiamento para o desenvolvimento de infraestrutura no Terceiro Mundo, é uma ideia muito boa. Se eu sou um pequeno país na África e a China diz “eu posso construir uma ponte para você” e os EUA também se oferecem, então poderei escolher o que for melhor. Mas a China já gastou US$ 1 trilhão na iniciativa de Cinturão e Rota, enquanto os EUA estão tendo todas as dificuldades orçamentárias para construir sua própria infraestrutura.

F: Sim, o pacote de infraestrutura de Joe Biden está há algum tempo parado no Senado…

KM: Exatamente. Sabe, quando fui pela primeira vez aos EUA em 1974, aquele era o Primeiro Mundo. Pequim era o Terceiro Mundo. Hoje, se você vai para Pequim, o aeroporto de Pequim e o aeroporto de Xangai são de Primeiro Mundo, enquanto o aeroporto John F. Kennedy [Nova Iorque] e o Washington Dulles [na capital americana] são de Terceiro Mundo. Se você quiser pegar um trem do Terceiro Mundo, pegue o trem de Boston para Nova Iorque, bem diferente do trem de Pequim para Xangai. Se os EUA estão falando sério sobre querer ajudar a melhorar a infraestrutura de outros países, eles deveriam primeiro melhorar sua própria infraestrutura. Uma das estatísticas mais surpreendentes que alguém me deu foi que, na China, você pode consertar uma ponte em 43 horas, e nos EUA, leva cinco anos. Acho que há um certo grau de irrealidade no que os EUA estão fazendo. É claro que podem contrapor o que os chineses vêm fazendo na África, mas precisam estar à altura.

F: Os chineses são bem conhecidos por ignorar disputas internas, usualmente não mexem com você se você não mexer com eles. Já os EUA geralmente vinculam esse tipo de acordo econômico a uma série de compromissos. Quão eficaz será seduzir esses países, muitos deles em desacordo com o modelo americano de democracia e padrões de direitos humanos, se o dinheiro vier acompanhado de vigilância?

KM: Para ser justo com os EUA, embora digam que a disputa com a China é uma competição de democracias contra autocracias, eles não hesitam em fazer parcerias com autocracias. Estive na mesma sala com o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, há apenas duas horas e ele estava dizendo que os EUA não hesitarão em apoiar o Vietnã contra a China. O Vietnã é uma autocracia. Todos os países colocarão seus interesses nacionais em primeiro lugar, e não os interesses de outros países.

F: Sobre a América Latina, há algo que certamente preocupa os governantes da região. Se chegarmos a uma situação de ter de decidir entre a China e os EUA, o Brasil estará em um posição muito difícil, porque geográfica e culturalmente, estamos mais próximos dos EUA, mas, economicamente, estamos nos tornando cada vez mais dependentes da China. O que vai acontecer com esses tipos de Estados que orbitam em torno de ambos os países?

KM: Essa não é uma pergunta sendo feita apenas pelo Brasil, mas por 193 países no mundo. Para eles, aconselho a lerem um artigo do premiê de Singapura [Lee Hsien Loong] para a [revista] Foreign Affairs quando ele diz, muito claramente, que Singapura é amiga dos Estados Unidos e da China. Não queremos escolher e isso é bom. Novamente, quando ouvi o secretário de Defesa, Lloyd Austin, ele mencionou que entende perfeitamente essa posição.

Nós queremos ser amigos de ambos. Acho que essa sua pergunta é importante, porque é muito importante para países como o Brasil não esperar até que você seja obrigado a escolher. Vocês deveriam proclamar com antecedência que esperam manter laços de amizade com os dois países. Seria injusto os EUA pedirem ao Brasil uma escolha. Mas o Brasil junto com outros países da América Latina, África e Ásia, deveriam se reunir e deixar bem claro que se quiserem brigar, que vão em frente, mas não nos peçam para nos juntarmos a vocês.

F: Você diz no seu livro que não havia clareza entre os funcionários do governo [Donald] Trump quanto à estratégia por trás das tarifas na guerra comercial —se era uma tentativa de desconectar as economias chinesa e americana ou uma forma de obrigar Pequim a recuar em práticas que consideravam injustas. Biden foi eleito, mas ainda não aboliu essas tarifas. Se Trump não tinha um objetivo claro, Biden tem?

KM: Durante toda a campanha, Biden costumava dizer consistentemente que a guerra comercial de Trump contra a China não prejudicou a China. Isso é verdade. Mas nos EUA, há uma histeria anti-China muito forte que se apoderou dos país. E assim, embora os EUA sejam um filho da civilização ocidental, um filho do Iluminismo ocidental e, portanto, deveriam tomar decisões com base na razão, na lógica e na ciência. Mesmo assim, não conseguem fazer a coisa razoável e lógica que é retirar essas tarifas. De certa forma, prova o ponto-chave em meu livro, que os EUA estão agora tão comprometidos com essa luta geopolítica contra a China que, na verdade, estão prejudicando seus próprios interesses. E nesse sentido eu diria que, assim como Trump não tinha nenhuma estratégia de longo prazo, até o momento, o governo Biden também não tem.

F: A China acaba de encerrar as comemorações dos 100 anos do PC Chinês e a festa foi uma oportunidade para Xi Jinping alardear as conquistas da sigla ao longo da história. Mas também foi um lembrete ao Ocidente dos principais pontos de tensão nas relações: a situação de Hong Kong em 2019, a militarização do mar do Sul da China, Taiwan e a questão dos uigures em Xinjiang… Esses elementos se tornaram inevitáveis e continuarão a impedir o diálogo entre o Ocidente e a China nos próximos anos?

KM: Nenhuma dessas questões impedirá o crescimento da China. E Hong Kong, como você sabe, faz parte da China. No caso do mar do Sul da China, você ouvirá muito barulho, mas não haverá batalhas militares. Acredito que os principais envolvidos conseguirão alcançar um compromisso pacífico a menos, é claro, que haja uma escaramuça entre uma embarcação naval americana e uma embarcação naval chinesa. Mas para os principais afetados, como a Malásia, Brunei, Filipinas, Vietnã, eles têm reivindicações conflitantes com a China, mas devem chegar a um acordo.

F: Taiwan, porém, continua sendo um problema.

KM: É claro, mas Taiwan pode permanecer pacífica se os EUA estabelecerem um entendimento com a China em cumprir o que prometeu nos anos 1970: manter relações oficiais com Pequim e relações não oficiais com Taiwan. Portanto, se esse for o entendimento, não haverá mudança.

F: Mas Xi Jinping tem repetido sucessivas vezes que não quer empurrar esta questão para a próxima geração. Isso não pode ser considerado um sinal de alerta da liderança chinesa?

KM: Enquanto nenhum esforço for feito para mudar o status quo, a paz pode permanecer no estreito de Taiwan. Se alguém tentar tornar Taiwan independente, aí sim a China declarará guerra e é por isso que hoje, quando ouvi o secretário de Defesa, fiquei feliz que ele tenha repetido duas ou três vezes que os EUA estavam comprometidos com a política da China única.

F: O termo “política de China única” é bastante ambíguo porque você não está pressupondo qual China é a única China.

KM: Uma vez que os EUA estabeleceram relações com Pequim, eles reconhecem o governo de Pequim como o governo legítimo da China. Mesmo os funcionários do Departamento de Estado precisam renunciar antes de serem destacados para Taiwan. Então, eu acho que, contanto que eles não mudem a fórmula atual, estaremos bem. Portanto, devemos encorajar os EUA e a China apenas a manter o status quo em Taiwan e não pressionar pela independência, porque se isso acontecer, certamente haverá problemas para os taiwaneses.

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Plataforma brasileira lança guia em português para iniciantes em China https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/07/19/plataforma-brasileira-lanca-guia-em-portugues-para-iniciantes-em-china/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/07/19/plataforma-brasileira-lanca-guia-em-portugues-para-iniciantes-em-china/#respond Mon, 19 Jul 2021 20:41:39 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/6209907850_e554d92ede_3k-300x215.jpg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=215 Conhecida por ser a pioneira no lançamento de uma newsletter sobre a China em língua portuguesa, a plataforma Shūmiàn acaba de publicar um guia para brasileiros iniciantes na área de sinologia.

Com 44 páginas e participação de 13 sinólogos brasileiros, o guia passeia por vários temas no universo do estudo da China, de sugestões de livros básicos a subtópicos como filosofia, religiosidade, cultura, economia, meio ambiente e relações internacionais. Neste último tema, há recortes para as relações sino-brasileiras e africanas. Os organizadores também indicam filmes em cada seção.

Idealizadora do guia, a cofundadora e mestre em Estudos da China Contemporânea pela Universidade do Povo Júlia Oliveira Rosa conta que o guia começou a ser desenhado pela equipe —atualmente com nove voluntários— desde o último trimestre de 2020.

“Começamos porque existe uma lacuna na base do estudo da sinologia no Brasil. Hoje já temos muita gente qualificada na área, mas é urgente formar mais quadros, e as nossas universidades não cobrem muito a China. Com esse guia, a gente também tenta ajudar quem é autodidata e sempre aborda nossa equipe pedindo recomendações de livros e documentários”, conta Rosa.

Inicialmente, a equipe pretendia lançar o compilado ainda no ano passado. Mas conforme o trabalho avançou, a ambição de torná-lo mais abrangente também cresceu.

“Somos muito preocupados com questões de diversidade e tentamos evitar o perfil padrão da academia brasileira, que é majoritariamente masculina e branca. Além disso, fizemos um esforço para mapear professores fora do eixo Sul-Sudeste”, conta.

O resultado, explica a sinóloga, deve ser visto com um trabalho em desenvolvimento. A Shūmiàn espera atualizar o guia anualmente, sempre com os temas mais atuais na China. Para a próxima edição, Julia adianta, a proposta é adicionar tópicos sobre política interna chinesa, questões de gênero, tecnologia e direito.

O guia pode ser baixado gratuitamente neste link.

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Com Xi Jinping, tornar-se membro do Partido Comunista Chinês nunca foi tão difícil https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/07/03/com-xi-jinping-tornar-se-membro-do-partido-comunista-chines-nunca-foi-tao-dificil/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/07/03/com-xi-jinping-tornar-se-membro-do-partido-comunista-chines-nunca-foi-tao-dificil/#respond Sat, 03 Jul 2021 19:00:22 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/325651750795e07d570f46d12303f227934cf0896a9782d3f3aafd9c94d5fca6_60dabfcdbd14d-300x215.jpeg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=192 Líder deixou processo de filiação mais rigoroso para barrar quem busca apenas ascensão na carreira

Pouco mais de 95 milhões de membros. Essa é a quantidade de pessoas filiadas ao Partido Comunista Chinês de acordo com números atualizados do Departamento de Organização, popularmente conhecido como o “RH” da legenda. Se fosse um país, o partido seria mais populoso que todas as 58 nações europeias, exceto a Rússia. Entre os 57 países e territórios ultramarinos que compõem as Américas, só perderia para três deles: Estados Unidos, Brasil e México.

No ano em que completa seu centenário, o PC Chinês pode se orgulhar da segunda colocação entre as organizações políticas com o maior número de filiados no mundo, perdendo apenas para o Partido do Povo Indiano, ou BJP, na sigla em inglês, com seus 180 milhões de membros. Por trás dos números superlativos, a sigla chinesa guarda um processo de recrutamento hiperseletivo e profissional, aprimorado cada vez mais desde a ascensão de Xi Jinping ao posto de secretário-geral da legenda.

Zeng Weishen, doutorando em relações internacionais na Universidade de Pequim, foi criado em uma família tradicional do partido na província costeira de Fujian, no sudeste do país. Quando passou a acompanhar a rotina do pai, inicialmente um dos diretores do Departamento de Alívio à Pobreza local, teve a certeza de que se inscreveria no rigoroso processo de seleção. Aceito integralmente em 2017, conta que a conquista foi uma das maiores honras no seu extenso currículo de excelências acadêmicas e profissionais.

“O partido liderou a revolução e a modernização na China, e acredito que terá um papel ainda mais vital no desenvolvimento do país no futuro. É uma grande honra [ter sido aceito]. Os membros são indiscutivelmente as pessoas mais confiáveis e capazes deste país e se tornam uma referência na área que escolhem trabalhar“, afirma.

Mesmo com credenciais dentro da sigla, ele percorreu uma jornada de três anos até ser selecionado, com etapas que envolveram conversas com filiados e diversos testes na universidade em que estuda. Para ele, a rígida seleção está ligada à vontade da legenda em absorver “gente determinada e confiável, que pense na sua escolha com cuidado”.

A experiência de Zeng está alinhada às recentes orientações gerais do PC Chinês desde a chegada de Xi ao poder. Em 2012, ano em que o dirigente assumiu oficialmente o posto de secretário-geral do partido, o número de novos membros caiu. A legenda, que em sua Constituição interna se define como “a vanguarda da classe trabalhadora” baseada na aliança entre o proletariado urbano e os camponeses, viu essa última categoria diminuir em proporção, enquanto filiados com atributos mais úteis ao desenvolvimento econômico nacional ganharam cada vez mais espaço.

Especialistas na estrutura burocrática da organização avaliam que, hoje, o PC Chinês está mais elitizado que nunca. Os membros com educação universitária saltaram de 11,3 milhões em 1998 para 46,9 milhões em 2019, quando constituíram 50% do total pela primeira vez. A título de comparação, apenas 9% dos chineses têm ou excedem esse nível educacional. Com Xi, além de educação formal, uma nova variável foi adicionada: comprometimento ideológico.

Pesquisador do funcionamento do partido e consultor de China no Grupo Eurásia, Neil Thomas diz que, por muito tempo, a legenda atraiu pessoas ambiciosas em busca de ascensão na carreira. Como as empresas chinesas têm especial predileção por filiados —já que ajudam a melhorar as relações com as autoridades locais —, e os melhores cargos no serviço público são dedicados a eles, não faltou quem se inscrevesse buscando vantagens pessoais. Xi chegou à liderança nacional determinado a mudar esse panorama.

“Ele estava preocupado com as motivações políticas e a deterioração da pureza ideológica, com pessoas se juntando ao PC Chinês apenas para ganhar mais dinheiro. E Xi é um verdadeiro crente do partido e de sua missão em tornar a China um país forte, poderoso e próspero. Ele então se dedicou a criar mecanismos que garantissem membros politicamente disciplinados. Agora há muito mais requisitos, além de uma pressão informal para respeitar a autoridade do Comitê Central, que ele próprio chefia”, diz Thomas.

Já em uma das primeiras reuniões que comandou no Comitê Permanente do Politburo —a mais alta instância de poder no país, Xi emitiu uma nova diretriz para “controlar os números [de novos membros], otimizar a estrutura e melhorar a qualidade dos quadros”. E declarou: “Não queremos pessoas que são politicamente desqualificadas e que querem entrar furtivamente no partido para fisgar lucros”.

O Departamento de Organização do PC Chinês foi rápido em atender a demanda do novo líder e lançou a meta de crescimento de 1,5% ao ano em novos membros —durante o governo de Hu Jintao, antecessor de Xi, esse número era, em média, 2,4%, com pico de 3,1% em 2012. Um ano depois, o Escritório Geral da sigla criou um manual, definindo todos os processos de recrutamento pela primeira vez desde 1990 (veja abaixo o passo a passo).

Enquanto a profissionalização dos membros do partido cresceu, a representatividade de operários e trabalhadores rurais seguiu a tendência inversa. Em 2007, essa categoria representava 41,5% dos membros. Hoje são 34,8%.

Além da necessidade de garantir lealdade ideológica, a melhora no processo seletivo está muito ligada à campanha de combate à corrupção, uma das bandeiras da gestão Xi. Para conter o nepotismo e a venda de cargos —algo comum até pouco tempo atrás, principalmente nas esferas mais baixas do Estado—, tornou-se imperativo restringir a quantidade de novos membros.

“Com o mecanismo atual, ficou muito complexo passar por todo o processo. E ele também é bastante subjetivo, ainda que haja bastante gente do comitê local e da assembleia envolvida para garantir que os selecionados sejam, de fato, os melhores entre os inscritos”, explica Thomas.

Recentemente, porém, o número de recrutamentos começou a crescer, embora a níveis bem inferiores aos vistos na era Hu. Para o pesquisador, as estatísticas refletem um PC mais confortável com as regras que criou, depois de anos tentando entender melhor como recrutar as pessoas certas. “Este será o novo normal”, afirma.

Como se tornar membro do Partido Comunista da China

  1. Pedido de filiação – Interessados enviam uma ficha de filiação à unidade mais próxima de organização do partido. É necessário ter mais de 18 anos, ser chinês e “estar disposto a participar de uma organização do partido e trabalhar ativamente nela, reconhecendo a legitimidade da plataforma e da constituição do PC Chinês”;
  2. Entrevista de seleção  Dentro de um mês, os inscritos recebem a visita de um oficial do PC Chinês que vai tentar compreender as motivações do candidato e apresentar condições e procedimentos para ingressar na organização;
  3. Relatório do oficial do partido – O oficial do PC Chinês enviado para a entrevista emite um relatório, recomendando ou não o prosseguimento do pedido de filiação. A organização na qual a inscrição foi feita também é convidada a dar um parecer;
  4. Avaliação de ficha – Um comitê com patente mais alta faz um levantamento preliminar do histórico do candidato, incluindo possíveis delitos criminais ou “problemas” ideológicos;
  5. Apoio de outros membros – O candidato precisa conquistar o aval de dois membros plenos do partido que apoiem sua inscrição. Para isso, precisa demonstrar conhecimento básico da história e do funcionamento do PC Chinês, provar ter “qualidade moral e consciência política”, explicar a motivação da filiação e ter bom histórico familiar;
  6. Programa de formação – Por pelo menos um ano, o candidato precisa ingressar em um programa de formação que explica os princípios organizacionais do PC Chinês, as obrigações e os direitos dos membros e a “devoção vitalícia ao comunismo”. As avaliações de quem pode prosseguir para as próximas etapas é feita semestralmente por membros plenos que supervisionam os estudos;
  7. Vinculação a comitês – Após o ano de treinamento, o candidato é considerado um “ativista” partidário e começa a ter alguns direitos e deveres. É necessário reportar atividades regularmente ao comitê onde foi feita a inscrição e se registrar como “membro em desenvolvimento”;
  8. Nova investigação – Depois de ser listado, o candidato é submetido a um “escrutínio cuidadoso” para avaliação de suas motivações e de seu passado.
  9. Mentoria – Os membros em desenvolvimento são submetidos a uma espécie de mentoria por dois membros plenos, encarregados de treinar e educar o aspirante ao partido. Se for punido e perder os direitos de filiação neste período, o candidato não pode mais continuar no processo e é proibido de se inscrever novamente;
  10. “Teste político” – O candidato é novamente submetido a um teste, de caráter eliminatório, a respeito das teorias e diretrizes do PC Chinês. Nesta etapa, também é feita uma nova investigação da situação política de familiares próximos e até mesmo do círculo de amizades do aspirante;
  11. Treinamento centralizado – O aprovado é então enviado a um “comitê partidário de base” ou “departamento de organização”, usualmente em cidades maiores, onde passa por um treinamento de no mínimo três dias;
  12. Nova peneira – Os instrutores deste treinamento e os comitês de filiação fazem mais um escrutínio dos membros, indicando quem deve continuar na seleção;
  13. Chefes e professores ouvidos – Um comitê superior é enviado para ouvir o que professores, chefes e colegas de trabalho têm a dizer sobre os candidatos. As entrevistas duram em torno de três meses, e se o aspirante deixar o emprego ou os estudos nesse período, não poderá avançar no processo seletivo;
  14. Carta de voluntariado – Quem chega até esse estágio escreve uma carta em que se voluntaria a se juntar ao PC Chinês;
  15. Visita e novo relatório – Um membro pleno ou diretor de um comitê partidário visita o candidato, faz uma nova entrevista, dá novas orientações sobre os objetivos do PC Chinês e, ao final, escreve um parecer avaliando se ele deve ou não chegar à banca da assembleia;
  16. Dossiê discutido em assembleia – O dossiê completo, que inclui toda a documentação, resultados de testes e transcrições de entrevistas e pareceres de cada candidato, é submetido a uma assembleia geral, que vota cada caso individualmente;
  17. Aprovação condicional – As assembleias têm o prazo de aproximadamente três meses para analisar se todas as condições de filiação foram atendidas. Se receber o aval, o candidato pode ingressar no partido. O departamento de organização local envia então os dados para registro condicional;
  18. Incorporação ao PC Chinês – Novos membros são incorporados a filiais e grupos partidários, nos quais passam por uma espécie de “estágio probatório”. É necessário continuar as sessões de treinamento e educação política;
  19. Juramento – Ao som do hino, os membros —agora chamados de “camaradas” (同志, tóngzhì)— discursam e fazem o juramento de lealdade ao partido. O PC Chinês orienta que essa cerimônia seja realizada em “ambiente pequeno, formal, sério e solene”;
  20. Participação e trabalho – Por um ano, os “camaradas” trabalham em organizações partidárias, participam de treinamentos e são enviados para conversas com a população. Ao final deste período, é necessário pedir a mudança de status para “filiação plena”;
  21. Parecer final – As organizações e grupos em que o “camarada” atuou são consultadas e emitem um relatório. Se tiver cumprido todo o processo apropriadamente, será convertido a membro pleno. A validação da conversão para o status mais alto geralmente leva até três meses e é anunciada pelo secretário do partido da região. Começa, então, a contagem do tempo de filiação, em que membros plenos mais seniores têm acesso a cargos e posições mais altas na estrutura do PC Chinês.

Fonte: Rede do Partido Comunista Chinês

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O que a história de um casal revela sobre o preconceito contra LGBTs na China https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/06/19/o-que-a-historia-de-um-casal-revela-sobre-o-preconceito-contra-lgbts-na-china/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/06/19/o-que-a-historia-de-um-casal-revela-sobre-o-preconceito-contra-lgbts-na-china/#respond Sat, 19 Jun 2021 20:28:19 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/7de95998d694f97435407989d54080ee659da8e35bc8272d7a572e3c1876b9de_5afd917672273-300x215.jpeg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=186 Ao sair da faculdade em 2019, Xiao Mei* estava animada. Recém-formada em língua inglesa na Universidade Sun Yat-sen, ela tinha acabado de conseguir um emprego como professora em uma escola de elite e finalmente poderia se mudar de Guangzhou, no sul da China, para viver com a namorada em Shenzhen.

De malas prontas e contrato de aluguel assinado, o casal foi surpreendido por uma mensagem dias antes da viagem: a escola estava cancelando o contrato sob a alegação de que Mei não era apta para o trabalho. Elas descobriram mais tarde que a dispensa foi motivada por uma foto em que beijava a namorada no rosto, postada apenas para amigos no aplicativo WeChat, mas vazada para os futuros chefes pelo sogro de Mei, que não aceitava o relacionamento.

“Quando disse à escola que tinha assumido dívidas para me mudar para uma cidade tão cara quanto Shenzhen, disseram que não recuariam, pois eu poderia encorajar meus alunos a aceitarem relações ‘doentias”’, conta.

O sogro, dono de uma pequena fábrica no leste do país, ofereceu-se para pagar as contas contraídas pela namorada de Mei, sob a condição de que terminassem o relacionamento. Elas não aceitaram.

“Meu salário na escola seria alto, então tínhamos escolhido um apartamento em uma região mais nobre e gastado com mobília de melhor qualidade. Minha namorada não conseguiria arcar com os custos sozinha, e foi preciso trabalhar em dois empregos por cerca de dez horas diárias até juntar o suficiente para quitar os empréstimos que fizemos com amigas”, relembra.

O caso está longe de ser uma exceção. No início de junho —coincidentemente, o mês em que o orgulho LGBTQIA+ é celebrado—, um casal de mulheres lésbicas conseguiu que um processo por discriminação a minorias fosse aceito pela Corte Distrital de Changning, em Xangai, uma das mais importantes do país.

Como reportado pelo jornal South China Morning Post, elas pretendiam celebrar o dia dos namorados (usualmente comemorado na China no dia 21 de maio) e compraram um pacote com descontos para casais em um zoológico em Guangzhou. Quando tentaram usar os ingressos, foram informadas pelos funcionários que “casais são formados apenas por um homem e uma mulher” e que deveriam “ter se informado sobre as políticas do local antes de comprar as entradas”.

Nacionalismo e preconceito

Mesmo com várias personalidades e até imperadores gays em sua história, a China só descriminalizou a homossexualidade em 1997. Quatro anos depois, a terceira edição da Classificação Chinesa de Transtornos Mentais removeu a homossexualidade da lista de transtornos mentais, mas manteve a categoria “homossexualidade ego-distóica”, uma condição abolida da lista de doenças reconhecidas pela OMS em 1986 e que descreve pessoas que não aceitam a própria sexualidade. A decisão abriu brechas para terapias de conversão e manteve viva a patologização da sexualidade não heterossexual.

Para Séagh Kehoe, especialista em estudos de gênero e minorias sexuais na China, o foco da era Xi Jinping em “valores familiares” e as “ansiedades demográficas em torno da queda nas taxas de fecundidade e envelhecimento da população” aprofundaram o preconceito contra casais LGBTQIA+. Lecionando na Universidade de Westminster, no Reino Unido, Kehoe defende que a ascensão do nacionalismo —”quase sempre profundamente patriarcal e heteronormativo”— estigmatiza a sexualidade de minorias, enquadrando-a como um “valor ocidental”.

“A ênfase em promover o casamento heteronormativo e em ter filhos faz parte da obsessão mais ampla de estabilidade social do estado. O nacionalismo marca pessoas, desejos e práticas LGBTQIA+ como algo diferente e de outro lugar, basicamente ‘não chinês’. Ativistas que combatem o preconceito são reprimidos, e as autoridades também banem rotineiramente o conteúdo queer em filmes, séries de TV e online, criando uma cultura de silêncio, estigma e, às vezes, com ideias bastante limitadas sobre o que é família”, avalia.

Kehoe diz acreditar que dinâmicas machistas, comuns mesmo entre a comunidade queer, também são corriqueiras na China e que “homens e mulheres gays são percebidos de maneiras diferentes”.

“Isso afeta desproporcionalmente as mulheres queer, sua participação, capacidade de serem ouvidas e de liderar. É por isso que há tanta sobreposição entre o ativismo queer e o feminista na China”, afirma, destacando, porém, que homens gays estão sujeitos à pressão da sociedade e do governo para “cultivarem a masculinidade”.

Casamento igualitário

Em 2019, a China abriu para consulta pública a possível inclusão do casamento entre pessoas do mesmo sexo em seu primeiro Código Civil, lançado oficialmente no ano passado. Quase 200 mil pessoas apelaram pela aprovação, mas a possibilidade foi descartada pelo Comitê Permanente da Comissão de Assuntos Legislativos do Congresso Nacional do Povo alegando a necessidade em se manter “a monogamia heterossexual alinhada às normas culturais tradicionais da China contemporânea”.

Mei diz que a falta de um arcabouço legal que proteja a união com sua namorada é motivo constante de preocupação.

“A minha família não apoia, mas também não desrespeita a minha relação. Já a família da minha namorada tem muitos membros influentes na cidade dela, querem evitar um escândalo. Imaginar uma situação em que eu ou ela fiquemos doentes e precisemos que uma das duas acesse contas bancárias ou assine autorizações me deixa ansiosa. Também nos desencoraja a ter um filho, já que não poderemos registrar a criança com duas mães”, desabafa.

Kehoe destaca que enquadrar a homossexualidade em oposição às “normas culturais tradicionais” da China dificulta vislumbrar um cenário em que o Estado apoie a igualdade no casamento. Mesmo assim, aprovar o casamento igualitário no país não é impossível, e “pressões sociais podem obrigar o Estado a ceder”.

“Pessoas queer não têm proteção legal para orientação sexual e identidade de gênero, nenhum direito legal de adotar, nenhum tipo de relacionamento entre pessoas do mesmo sexo reconhecido por lei. Contudo, ativistas queer na China fazem um trabalho realmente incrível na promoção de mudanças e são muito criativos na forma como lidam com questões como censura ou defendem a inclusão LGBTQIA+ na sociedade, então veremos”.

*O nome foi alterado a pedido da entrevistada.

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Pedido de desculpas de ator americano alimenta debate sobre Taiwan e censura https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/pedido-de-desculpas-de-ator-americano-alimenta-debate-sobre-taiwan-e-censura/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/pedido-de-desculpas-de-ator-americano-alimenta-debate-sobre-taiwan-e-censura/#respond Wed, 09 Jun 2021 19:58:31 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/33b9ad202f9c87a7726007a63979ccd7140bbb789831ff9cc3babc479b8ffeae_6077cf65ce899-300x215.jpeg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=163 Famoso lutador de luta livre e estrela de “Velozes e Furiosos”, o ator americano John Cena achou que seria uma boa ideia divulgar o nono filme da franquia em Taiwan falando em mandarim. Entrevistado por uma rede de televisão local, Cena se meteu em uma enrascada com ramificação política: anunciou alegremente que a ilha –considerada uma província rebelde pelo governo em Pequim– seria o “primeiro país” a assistir à produção.

A reação online foi imediata, levando Cena a se desculpar em mandarim para seus mais de 600 mil seguidores no Weibo (espécie de Twitter chinês) e motivando uma grande discussão acadêmica sobre a assertividade chinesa e a autocensura nos países ocidentais.

Localizado a 180 quilômetros da costa chinesa, o arquipélago de Taiwan é povoado por chineses da etnia han desde o século 13 e já foi dominado por holandeses, espanhóis e japoneses. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a rendição de Tóquio, o território retornou brevemente ao controle da China continental em 1945, algo que durou pouco: com o fim da guerra civil chinesa quatro anos depois, o arquipélago se tornou o refúgio dos nacionalistas do Partido Kuomintang que tentavam escapar do Partido Comunista Chinês, que conquistou o controle do território continental.

Governado inicialmente por uma ditadura que reclamava domínio sobre todo o território chinês, o arquipélago perdeu relevância ao ser substituído pela China comunista no Conselho de Segurança da ONU em 1971, manobra do ex-presidente americano Richard Nixon para se aproximar de Mao Tsé-tung.

Sem poder político internacional, a província adotou o regime democrático no início dos anos 1990 e conta agora com uma considerável parcela da população que deseja a independência. Ao chamar Taiwan de país, Cena indiretamente reconheceu a soberania do governo em Taipei sobre o território, pisando em um calo histórico da China comunista que tenta a reunificação desde que foi fundada.

Para a pesquisadora associada do Instituto Asiático da Universidade de Melbourne Melissa Conley Tyler, a reação online é parte de uma extensa estratégia de Pequim para dissuadir Taiwan de declarar independência e pressionar o governo a negociar o retorno do território.

Acadêmica visitante no Ministério das Relações Exteriores taiwanês, Conley Tyler afirma acreditar que as tensões tornaram-se mais evidentes recentemente com a ascensão do Partido Democrata Progressista taiwanês ao Executivo, considerado mais independente.

“A China tem sido paciente e vem usando meios políticos para promover a reunificação, tendo como limite a data de 2049, quando se completam os cem anos da fundação da República Popular comunista. O líder chinês, Xi Jinping, porém, tem tocado nessa questão com mais frequência, defendendo que o problema não pode ser passado de geração para geração. É possível que ele queira ser o líder a receber o crédito pelo retorno de Taiwan”, explica Conley Tyler.

Citando pesquisas de opiniões recentes realizadas no arquipélago, a pesquisadora afirma que Taiwan acabou desenvolvendo “sua própria identidade como um lugar distinto” da China continental e que Pequim vai precisar vencer uma barreira popular caso queira discutir a reunificação em termos pacíficos: “A maioria prefere a independência, com dois terços apoiando-a se Taiwan puder manter relações pacíficas com a China e quase metade defendo a separação, mesmo que isso levasse a China ao ataque”, detalha.

O antagonismo do ex-presidente americano Donald Trump à China continental também aumentou as tensões na região. Quando foi eleito em 2016, Trump se tornou o primeiro presidente a aceitar uma ligação da Presidência taiwanesa parabenizando-o pela vitória. O telefonema acendeu a luz amarela entre líderes comunistas, que passaram a duvidar do compromisso americano à “política de China única”, um princípio ambíguo em que os Estados Unidos reconhecem a existência de uma só China, evitando debates separatistas, mas sem se comprometer sobre qual das duas Chinas seria a “verdadeira”.

“Com Trump, os Estados Unidos se tornaram mais ativos em seu apoio a Taiwan em termos de venda de armas, melhorando o contato com as autoridades. Sob Biden, tem havido um esforço para atrair parceiros e aliados para mostrar apoio [ao arquipélago]”, diz Conley Tyler, mencionando discussões bilaterais do presidente democrata com o primeiro-ministro japonês, Yoshihide Suga, e o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, nas quais o assunto foi mencionado como motivo de preocupação regional.

Autocensura em foco

O pedido de desculpas do ator americano parece ter dado certo: o novo filme da franquia “Velozes e Furiosos” não desapareceu da programação na China continental. O vídeo em que Cena assume (em mandarim) ter cometido um “erro” e reafirma o “amor e o respeito à China e ao povo chinês” fez sucesso nas redes sociais e parece ter acalmado os ânimos de espectadores e oficiais da censura em Pequim.

Contudo, do outro lado do mundo, o vídeo recebeu uma enxurrada de críticas fora da China. Na Austrália, um canal de TV classificou o pedido de desculpas como “rastejante e patético”, enquanto o portal americano The Hill se referiu à iniciativa como uma “reverência nojenta à China”. No Twitter, milhares de internautas comentaram sobre o aumento da autocensura entre pessoas e empresas ocidentais para agradar Pequim e proteger negócios na China.

Para o diretor de pesquisa da rede Observa China e doutorando em Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Paulo Menechelli, a questão é cada vez mais presente.

O professor, que pesquisa o soft power chinês no cinema, diz que o considerável aumento nos filmes blockbusters tornou Hollywood cada vez mais dependente de bilheterias significativas. Devido à pandemia, o país ultrapassou os EUA em 2020 e se tornou o maior mercado cinematográfico mais lucrativo do mundo, liderando também o ranking dos países com o maior número de salas de exibição. Atualmente são 77.769, 2.000 das quais construídas apenas entre janeiro e fevereiro deste ano (a título de comparação, os Estados Unidos registravam 44.111 salas até o fim de 2020).

“O modelo força os estúdios a correrem atrás do lucro a todo custo, cedendo à ingerência dos censores chineses. Algumas produções até alteram o roteiro, criando uma versão específica para os chineses”, comenta Menechelli, à exemplo de “Homem de Ferro 3”, em que o herói Tony Stark é tratado por acupunturistas na cópia distribuída na China.

O pesquisador explica que essa estratégia não é nova —afinal, foi da tentativa de aproximação do ex-presidente Franklin Roosevelt com o Brasil que surgiu o carismático papagaio da Disney Zé Carioca—, e gera uma dinâmica geopolítica interessante: ao contrário da Guerra Fria, quando personagens soviéticos eram frequentemente retratados como vilões, a dependência americana da bilheteria chinesa fez desaparecer das telas os antagonistas da China.

Mais: em “Perdido em Marte” são os chineses a construírem a nave para buscar o astronauta americano. Na nova versão de “Amanhecer Violento”, a China invadiria os Estados Unidos, e o estúdio alterou digitalmente o filme para mudar para a Coreia do Norte.

“No ano passado, o Congresso americano tentou passar uma lei que proibia o acesso de estúdios a fundos governamentais caso façam concessões à China. Todo mundo riu porque o financiamento estatal americano ao cinema é insignificante se comparado à receita dos filmes em salas chinesas. Então é provável que esse debate causado pelo vídeo do John Cena se torne cada vez mais frequente”, prevê Menechelli.

Atualizações semanais

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