China, Terra do Meio https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br Reportagens, análises geopolíticas e notícias de um dos mais importantes países do mundo: a China Fri, 19 Nov 2021 15:36:10 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Com busca por ‘prosperidade comum’, regulação econômica e desigualdade estão na mira de Xi Jinping https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/09/04/com-busca-por-prosperidade-comum-regulacao-economica-e-desigualdade-estao-na-mira-de-xi-jinping/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/09/04/com-busca-por-prosperidade-comum-regulacao-economica-e-desigualdade-estao-na-mira-de-xi-jinping/#respond Sat, 04 Sep 2021 15:00:24 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/2f38cbc843d82e802d4cbfa3e61b6e7d8e4d5048879deb325adeb1707157268d_5ffc6ca5251f9-300x215.jpeg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=260 É quase um ritual. Entre o fim de julho e o início de agosto, líderes chineses somem da mídia e não são vistos em público. Grandes eventos, inspeções rotineiras a fábricas e empreendimentos e até as circulares publicadas nos jornais do partido, tudo cessa. 

Da agitada Pequim, a elite política comunista se desloca para Beidaihe, cidade-resort cerca de 330 km a leste da capital. Desses encontros já saíram decisões de importância histórica, o que faz sinólogos e jornalistas ficarem de sobreaviso, à espera do que virá.

Neste ano, o líder chinês, Xi Jinping, não demorou a sinalizar indícios de qual tinha sido a prioridade: a ênfase na busca da chamada “prosperidade comum”. Enquanto limusines com vidros escurecidos, policiais à paisana e cães farejadores circulavam pela cidade litorânea, o dirigente deixava o resort com o discurso pronto.

A tradição dessas cúpulas remonta ao século passado. Foi em Beidaihe que Mao Tsé-tung decidiu atacar a ilha Kinmen, controlada pelos nacionalistas, no episódio que desencadeou a Segunda Crise do Estreito de Taiwan, em 1958. O lugar também foi palco das discussões do Grande Salto Adiante —desastroso plano desenvolvimentista do fim dos anos 1950, responsável pela morte de dezenas de milhões de chineses— e das campanhas de repressão de Deng Xiaoping em 1983, destinadas a conter inúmeros episódios de violência pós-Revolução Cultural

Em 2021, o que saiu de lá foram essas duas palavras —ainda que elas já tivessem sido citadas antes; de acordo com a Bloomberg, o conceito apareceu ao menos 65 vezes em discursos neste ano. No último dia 17, Xi usou uma reunião da Comissão Central de Assuntos Financeiros e Econômicos para se dedicar a elas.

“A prosperidade comum é um requisito essencial do socialismo e uma característica-chave da modernização ao estilo chinês”, disse. “A prosperidade comum é a riqueza compartilhada por todos, tanto em termos materiais quanto culturais, e deve ser avançada passo a passo.”

Embora não signifique uma renúncia às regras do capitalismo, a política é um passo atrás no que o país vem fazendo desde que começou a se abrir, em 1978. À época, diante de uma economia destroçada e da miséria geral, Deng anunciou a intenção de deixar que “alguns fiquem ricos primeiro”, assumindo uma tolerância à desigualdade criticada pelo comunismo em prol do enriquecimento nacional. Deu certo, mas gerou uma grande distorção: a disparidade entre o topo e a base da pirâmide de renda.

Referências à prosperidade comum remontam ao governo Mao, ainda na fundação da república comunista, e se tornaram o centro da agenda política chinesa a partir de 2006, na era Hu Jintao. 

Em março daquele ano, o Congresso Nacional aprovou o 11º Plano Quinquenal –desenhado para prever as prioridades do Estado chinês–, introduzindo políticas inéditas no léxico chinês ao enfatizar que “crescimento econômico não é equivalente a desenvolvimento econômico”. Após o avanço observado no início do milênio, o documento clamava por “estabilidade em vez de rapidez” e lançava as bases de medidas que colocassem “as pessoas em primeiro lugar”.

Pesquisadora do conceito há quase duas décadas, a diretora do Departamento de Estudos Asiático-Americanos da Universidade da Califórnia, Cindy Fan, diz que, ao deixar que algumas pessoas ficassem ricas primeiro, Deng foi pragmático. “No contexto do final dos anos 1970 e início dos 1980, a China ainda era pobre, e a economia estava tão restrita que sua abordagem abriu as portas para que os mecanismos de mercado começassem a operar”, conta. Porém, conforme o país crescia, a desigualdade também avançava.

“É amplamente reconhecido que na China o acesso a educação, saúde e outros serviços básicos é altamente desigual. Rede de segurança social, planos de aposentadoria e seguridade social não estão bem estabelecidos. No governo de Xi, o tema se tornou urgente.”

O problema pode ser visto em números. No índice Gini, que mede a desigualdade em uma escala de 0 a 1, em que 0 significa igualdade de ganhos, a China marcou 0,46 em 2020, segundo o Banco Mundial. O resultado a coloca em situação pior que nações como Etiópia e Sudão. Burocratas e líderes do partido defendem há vários anos que, se o número não se aproximar de 0,40, há risco de convulsão social.

Para Fan, há espaço para diminuir essa lacuna entre ricos e pobres, e a China já se provou capaz de retirar milhões de pessoas da miséria extrema. Ela diz acreditar, contudo, que ainda que não queira matar o empreendedorismo ou redesenhar o chamado “socialismo de mercado” (sistema híbrido chinês que combina a estrutura política socialista com dinâmicas econômicas do capitalismo), Xi incentivará uma regulação maior em setores da economia.

“Comunicações oficiais têm mencionado com frequência a necessidade de aumentar o tamanho do grupo de renda média. Não parece que esses movimentos sejam antiempreendedorismo ou anti-investimento estrangeiro, mas está claro que o governo chinês quer impor mais regulamentações e usar ferramentas para melhorar a distribuição de renda”, diz.

Sob a bandeira da prosperidade comum, complementa ela, “é provável que o governo torne serviços como saúde mais acessíveis e baratos para a população rural, migrantes rurais e pessoas pobres nos centros urbanos”.

A especialista diz que, da forma como vem sendo mencionado por Xi, o termo abarca muitos setores e pode ser usado tanto para conter a desigualdade quanto para alcançar objetivos estratégicos essenciais ao Estado.

“Regulamentações mais pesadas das grandes empresas de tecnologia podem reduzir seu monopólio do mercado e ajudar a resolver os problemas de segurança cibernética. Exigir que o setor de educação privado não tenha fins lucrativos ajuda a reduzir a desigualdade e pode impulsionar as escolas públicas e reduzir a pressão sobre as crianças”, compara.

Para afastar rusgas com as políticas estatais, essas mesmas empresas que podem ser alvo de regulações já se adiantaram. Algumas das maiores companhias privadas nacionais, como a Tencent e a Pinduoduo, anunciaram investimentos de R$ 80,5 bilhões e R$ 8 bilhões, respectivamente, em um fundo de prosperidade comum e em desenvolvimento agrícola.

“A médio prazo, os empresários chineses provavelmente seriam mais cautelosos em termos de conquistar uma fatia muito grande do mercado e provavelmente adotariam mais ativamente a responsabilidade social corporativa como parte de seu plano e estratégia de negócios. Ela ganhou força na China no final dos anos 2000, mas o foco na prosperidade comum aceleraria ainda mais sua integração com o empreendedorismo, especialmente em grandes corporações.”

Erramos: A reportagem afirmou incorretamente que, caso o índice Gini, que mede desigualdade, se aproxime de 0,40, haveria risco de convulsão social na China, na visão de burocratas e líderes do Partido Comunista Chinês. Na verdade, o risco, segundo essa percepção, ocorre quando a cifra se afasta de 0,40.

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Pouco representadas no PC Chinês, mulheres são incentivadas a cumprir ‘papéis tradicionais’ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/07/06/pouco-representadas-no-pc-chines-mulheres-sao-incentivadas-a-cumprir-papeis-tradicionais/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/07/06/pouco-representadas-no-pc-chines-mulheres-sao-incentivadas-a-cumprir-papeis-tradicionais/#respond Wed, 07 Jul 2021 00:05:08 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/c10ed1ba509567b3893ea8d08b309a6593ca187f415f8e29bb14b9c9263c63e0_60dd1fca02de5-300x215.jpeg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=203 Partido sob Xi Jinping passou a reforçar dever como ‘esposas e mães’ para  enfrentar desafios demográficos

No dia 1º de julho, enquanto Xi Jinping discursava na Praça da Paz Celestial para uma plateia cuidadosamente escolhida por ocasião do centenário do Partido Comunista Chinês, a câmera da TV estatal passeava pelos convidados de honra sentados próximos ao púlpito. Os mais atentos talvez tenham percebido uma categoria pouco representada ali: mulheres.

Não é uma coincidência. O último censo demográfico, divulgado em maio pelo Escritório Nacional de Estatística da China, mostrou que mulheres correspondem a 48,76% da população, ou cerca de 688,44 milhões dos 1,4 bilhão de habitantes do país asiático. A representação feminina dentro do Partido Comunista, porém, é significativamente menor. Dados compilados em 2019 revelam que apenas 27,9% dos filiados são mulheres —e esse número tende a ser menor quanto maior for a importância do cargo.

Entre os delegados do Congresso Nacional do Povo e os membros da Conferência Consultiva do Povo Chinês, os mais altos órgãos na estrutura legislativa do país, apenas um quinto é formado por representantes femininas. No Politburo, que conta com 25 membros, há apenas uma —a vice-primeira-ministra Sun Chunlan—, e, desde a fundação da república comunista, em 1949, nenhuma mulher foi escolhida para ocupar uma das sete cadeiras do Comitê Permanente do Politburo, o topo da hierarquia burocrática.

Ainda que o próprio partido mencione entre suas prioridades a necessidade de recrutar mais mulheres e o governo estabeleça uma cota de 10% em postos executivos em nível local (vilas, condados, cidades e províncias), a meta raramente é atendida.

Especialista na estrutura do PC Chinês e consultor de assuntos sobre a China no Grupo Eurasia, Neil Thomas diz que os números atuais representam uma melhoria, já que em 1998 mulheres respondiam por apenas 16,6% dos filiados. Ele afirma existir uma “preferência institucionalizada” por líderes masculinos e um foco cada vez maior para que mulheres cumpram “papéis tradicionais de gênero e venham a se tornar esposas e mães, ajudando a enfrentar desafios demográficos que podem ameaçar a estabilidade do país”.

“Não se pode questionar publicamente a política do partido, e está ficando mais difícil fazer isso, mesmo nas reuniões internas. Portanto, se você é mulher, há um nível extra de pressão para obedecer as leis e os regulamentos que estimulam ter mais filhos e ser mais responsável ​​por cuidar dos filhos e dos afazeres domésticos”, diz Thomas.

A situação atual contrasta com a época em que o PC Chinês foi fundado, em 1921. Iniciado na Universidade de Pequim, o movimento anti-imperialista cobrava uma postura mais dura dos nacionalistas no combate às tropas invasoras japonesas e na rejeição aos termos do Tratado de Versalhes que mantinham retalhos do país nas mãos de forças estrangeiras. Naquele momento, as estudantes se juntaram aos manifestantes por participação política e foram, mais tarde, cooptadas na formação do partido que surgiria dois anos depois.

Contudo, a ascensão de Mao Tse-tung ao poder em 1949 e o foco em questões de classe desviaria o partido do seu objetivo histórico de alcançar a igualdade de gênero na China, como explica Zheng Wang, professora de estudos de gênero na Universidade de Michigan e autora do livro “Finding Women in the State: A Socialist Feminist Revolution in the People’s Republic of China” (encontrando mulheres no Estado: uma revolução socialista feminista na República Popular da China, inédito no Brasil).

Zheng afirma que, após o fim da guerra civil e a vitória dos comunistas, boa parte dos membros da legenda vinha da zona rural, onde os valores tradicionais e ligados ao patriarcado ainda estavam bastante vívidos. Foram os homens que lutaram no conflito os primeiros a ganhar cargos de maior importância na estrutura estatal, e, com o recrudescimento ideológico de Mao, a agenda feminista foi deixada de lado.

“No início da China comunista, essas feministas foram capazes de implementar uma série de leis e políticas para promover os direitos e os interesses das mulheres. Isso criou um tremendo progresso social para as chinesas, mas a partir de 1964 Mao resolveu se dedicar à luta de classes. A equidade de gênero então se perdeu”, diz Zheng.

A partir daí –e especialmente após o início da Revolução Cultural em 1966–, as feministas foram classificadas como “inimigas burguesas” e perderam terreno. A Federação Nacional de Mulheres da China, até então um dos mais importantes fóruns pela luta de pautas relacionadas às mulheres, cortou contato com grupos feministas independentes e se tornou cada vez mais dominada pelo Estado.

Mao morreu em 1976 e com ele, chegou ao fim a Revolução Cultural. A China passaria por um amplo período de reformas políticas e abertura econômica a partir de 1978, mas agora o problema era outro: virtualmente impedida de continuar militando, a primeira leva de feministas da revolução envelheceu e não conseguiu renovar os quadros.

“Algumas [feministas] retomaram seus cargos, mas não durou muito tempo, porque já estavam na idade de se aposentar. Então muitas daquelas mulheres que se filiaram em prol da libertação feminina, que escapavam de casamentos arranjados e abusos dos maridos já não tinham sucessoras”, relembra Zheng.

A professora afirma ainda que as reformas econômicas e o abandono parcial da economia planificada importou para a China as desigualdades de gênero próprias do capitalismo, criando disparidades salariais e promovendo homens, em vez de mulheres, a cargos de liderança. Tudo isso, explica ela, impacta na baixa representatividade feminina nas esferas de poder, uma situação que se tornou mais complicada sob o governo Xi.

“Xi foi o primeiro líder do partido que se atreveu a dizer que ‘o papel das mulheres na família é muito importante, é responsabilidade da mulher cuidar dos velhos e da família’. Nenhum líder comunista anterior, não importa o quão machista e patriarcal fosse, ousou fazer um discurso tão abertamente sexista. Porque eles sabiam que isso era politicamente incorreto”, pontua, mencionando que textos do partido têm reforçado “todas aquelas normas de gênero de Confúcio, que já têm mais de mil anos e enfatizam o papel da esposa e mãe virtuosa”.

Para Melissa Cambuhy, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), “estar no socialismo não significa superar contradições de gênero e raça”. Ela afirma que as mulheres foram centrais para a revolução chinesa, mas “só a luta política conquistará mudanças, porque a priori o poder continua com os homens”.

“Xi continua sendo homem, a despeito de ser líder, a despeito do socialismo. Existe algo de idealizado do que viria a ser o socialismo, como se fosse um paraíso, e isso é falso. O socialismo é um processo histórico em que a luta de classes, tanto contra bilionários como também no que se refere ao gênero e ao poder político, continua.”

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Com Xi Jinping, tornar-se membro do Partido Comunista Chinês nunca foi tão difícil https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/07/03/com-xi-jinping-tornar-se-membro-do-partido-comunista-chines-nunca-foi-tao-dificil/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/07/03/com-xi-jinping-tornar-se-membro-do-partido-comunista-chines-nunca-foi-tao-dificil/#respond Sat, 03 Jul 2021 19:00:22 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/325651750795e07d570f46d12303f227934cf0896a9782d3f3aafd9c94d5fca6_60dabfcdbd14d-300x215.jpeg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=192 Líder deixou processo de filiação mais rigoroso para barrar quem busca apenas ascensão na carreira

Pouco mais de 95 milhões de membros. Essa é a quantidade de pessoas filiadas ao Partido Comunista Chinês de acordo com números atualizados do Departamento de Organização, popularmente conhecido como o “RH” da legenda. Se fosse um país, o partido seria mais populoso que todas as 58 nações europeias, exceto a Rússia. Entre os 57 países e territórios ultramarinos que compõem as Américas, só perderia para três deles: Estados Unidos, Brasil e México.

No ano em que completa seu centenário, o PC Chinês pode se orgulhar da segunda colocação entre as organizações políticas com o maior número de filiados no mundo, perdendo apenas para o Partido do Povo Indiano, ou BJP, na sigla em inglês, com seus 180 milhões de membros. Por trás dos números superlativos, a sigla chinesa guarda um processo de recrutamento hiperseletivo e profissional, aprimorado cada vez mais desde a ascensão de Xi Jinping ao posto de secretário-geral da legenda.

Zeng Weishen, doutorando em relações internacionais na Universidade de Pequim, foi criado em uma família tradicional do partido na província costeira de Fujian, no sudeste do país. Quando passou a acompanhar a rotina do pai, inicialmente um dos diretores do Departamento de Alívio à Pobreza local, teve a certeza de que se inscreveria no rigoroso processo de seleção. Aceito integralmente em 2017, conta que a conquista foi uma das maiores honras no seu extenso currículo de excelências acadêmicas e profissionais.

“O partido liderou a revolução e a modernização na China, e acredito que terá um papel ainda mais vital no desenvolvimento do país no futuro. É uma grande honra [ter sido aceito]. Os membros são indiscutivelmente as pessoas mais confiáveis e capazes deste país e se tornam uma referência na área que escolhem trabalhar“, afirma.

Mesmo com credenciais dentro da sigla, ele percorreu uma jornada de três anos até ser selecionado, com etapas que envolveram conversas com filiados e diversos testes na universidade em que estuda. Para ele, a rígida seleção está ligada à vontade da legenda em absorver “gente determinada e confiável, que pense na sua escolha com cuidado”.

A experiência de Zeng está alinhada às recentes orientações gerais do PC Chinês desde a chegada de Xi ao poder. Em 2012, ano em que o dirigente assumiu oficialmente o posto de secretário-geral do partido, o número de novos membros caiu. A legenda, que em sua Constituição interna se define como “a vanguarda da classe trabalhadora” baseada na aliança entre o proletariado urbano e os camponeses, viu essa última categoria diminuir em proporção, enquanto filiados com atributos mais úteis ao desenvolvimento econômico nacional ganharam cada vez mais espaço.

Especialistas na estrutura burocrática da organização avaliam que, hoje, o PC Chinês está mais elitizado que nunca. Os membros com educação universitária saltaram de 11,3 milhões em 1998 para 46,9 milhões em 2019, quando constituíram 50% do total pela primeira vez. A título de comparação, apenas 9% dos chineses têm ou excedem esse nível educacional. Com Xi, além de educação formal, uma nova variável foi adicionada: comprometimento ideológico.

Pesquisador do funcionamento do partido e consultor de China no Grupo Eurásia, Neil Thomas diz que, por muito tempo, a legenda atraiu pessoas ambiciosas em busca de ascensão na carreira. Como as empresas chinesas têm especial predileção por filiados —já que ajudam a melhorar as relações com as autoridades locais —, e os melhores cargos no serviço público são dedicados a eles, não faltou quem se inscrevesse buscando vantagens pessoais. Xi chegou à liderança nacional determinado a mudar esse panorama.

“Ele estava preocupado com as motivações políticas e a deterioração da pureza ideológica, com pessoas se juntando ao PC Chinês apenas para ganhar mais dinheiro. E Xi é um verdadeiro crente do partido e de sua missão em tornar a China um país forte, poderoso e próspero. Ele então se dedicou a criar mecanismos que garantissem membros politicamente disciplinados. Agora há muito mais requisitos, além de uma pressão informal para respeitar a autoridade do Comitê Central, que ele próprio chefia”, diz Thomas.

Já em uma das primeiras reuniões que comandou no Comitê Permanente do Politburo —a mais alta instância de poder no país, Xi emitiu uma nova diretriz para “controlar os números [de novos membros], otimizar a estrutura e melhorar a qualidade dos quadros”. E declarou: “Não queremos pessoas que são politicamente desqualificadas e que querem entrar furtivamente no partido para fisgar lucros”.

O Departamento de Organização do PC Chinês foi rápido em atender a demanda do novo líder e lançou a meta de crescimento de 1,5% ao ano em novos membros —durante o governo de Hu Jintao, antecessor de Xi, esse número era, em média, 2,4%, com pico de 3,1% em 2012. Um ano depois, o Escritório Geral da sigla criou um manual, definindo todos os processos de recrutamento pela primeira vez desde 1990 (veja abaixo o passo a passo).

Enquanto a profissionalização dos membros do partido cresceu, a representatividade de operários e trabalhadores rurais seguiu a tendência inversa. Em 2007, essa categoria representava 41,5% dos membros. Hoje são 34,8%.

Além da necessidade de garantir lealdade ideológica, a melhora no processo seletivo está muito ligada à campanha de combate à corrupção, uma das bandeiras da gestão Xi. Para conter o nepotismo e a venda de cargos —algo comum até pouco tempo atrás, principalmente nas esferas mais baixas do Estado—, tornou-se imperativo restringir a quantidade de novos membros.

“Com o mecanismo atual, ficou muito complexo passar por todo o processo. E ele também é bastante subjetivo, ainda que haja bastante gente do comitê local e da assembleia envolvida para garantir que os selecionados sejam, de fato, os melhores entre os inscritos”, explica Thomas.

Recentemente, porém, o número de recrutamentos começou a crescer, embora a níveis bem inferiores aos vistos na era Hu. Para o pesquisador, as estatísticas refletem um PC mais confortável com as regras que criou, depois de anos tentando entender melhor como recrutar as pessoas certas. “Este será o novo normal”, afirma.

Como se tornar membro do Partido Comunista da China

  1. Pedido de filiação – Interessados enviam uma ficha de filiação à unidade mais próxima de organização do partido. É necessário ter mais de 18 anos, ser chinês e “estar disposto a participar de uma organização do partido e trabalhar ativamente nela, reconhecendo a legitimidade da plataforma e da constituição do PC Chinês”;
  2. Entrevista de seleção  Dentro de um mês, os inscritos recebem a visita de um oficial do PC Chinês que vai tentar compreender as motivações do candidato e apresentar condições e procedimentos para ingressar na organização;
  3. Relatório do oficial do partido – O oficial do PC Chinês enviado para a entrevista emite um relatório, recomendando ou não o prosseguimento do pedido de filiação. A organização na qual a inscrição foi feita também é convidada a dar um parecer;
  4. Avaliação de ficha – Um comitê com patente mais alta faz um levantamento preliminar do histórico do candidato, incluindo possíveis delitos criminais ou “problemas” ideológicos;
  5. Apoio de outros membros – O candidato precisa conquistar o aval de dois membros plenos do partido que apoiem sua inscrição. Para isso, precisa demonstrar conhecimento básico da história e do funcionamento do PC Chinês, provar ter “qualidade moral e consciência política”, explicar a motivação da filiação e ter bom histórico familiar;
  6. Programa de formação – Por pelo menos um ano, o candidato precisa ingressar em um programa de formação que explica os princípios organizacionais do PC Chinês, as obrigações e os direitos dos membros e a “devoção vitalícia ao comunismo”. As avaliações de quem pode prosseguir para as próximas etapas é feita semestralmente por membros plenos que supervisionam os estudos;
  7. Vinculação a comitês – Após o ano de treinamento, o candidato é considerado um “ativista” partidário e começa a ter alguns direitos e deveres. É necessário reportar atividades regularmente ao comitê onde foi feita a inscrição e se registrar como “membro em desenvolvimento”;
  8. Nova investigação – Depois de ser listado, o candidato é submetido a um “escrutínio cuidadoso” para avaliação de suas motivações e de seu passado.
  9. Mentoria – Os membros em desenvolvimento são submetidos a uma espécie de mentoria por dois membros plenos, encarregados de treinar e educar o aspirante ao partido. Se for punido e perder os direitos de filiação neste período, o candidato não pode mais continuar no processo e é proibido de se inscrever novamente;
  10. “Teste político” – O candidato é novamente submetido a um teste, de caráter eliminatório, a respeito das teorias e diretrizes do PC Chinês. Nesta etapa, também é feita uma nova investigação da situação política de familiares próximos e até mesmo do círculo de amizades do aspirante;
  11. Treinamento centralizado – O aprovado é então enviado a um “comitê partidário de base” ou “departamento de organização”, usualmente em cidades maiores, onde passa por um treinamento de no mínimo três dias;
  12. Nova peneira – Os instrutores deste treinamento e os comitês de filiação fazem mais um escrutínio dos membros, indicando quem deve continuar na seleção;
  13. Chefes e professores ouvidos – Um comitê superior é enviado para ouvir o que professores, chefes e colegas de trabalho têm a dizer sobre os candidatos. As entrevistas duram em torno de três meses, e se o aspirante deixar o emprego ou os estudos nesse período, não poderá avançar no processo seletivo;
  14. Carta de voluntariado – Quem chega até esse estágio escreve uma carta em que se voluntaria a se juntar ao PC Chinês;
  15. Visita e novo relatório – Um membro pleno ou diretor de um comitê partidário visita o candidato, faz uma nova entrevista, dá novas orientações sobre os objetivos do PC Chinês e, ao final, escreve um parecer avaliando se ele deve ou não chegar à banca da assembleia;
  16. Dossiê discutido em assembleia – O dossiê completo, que inclui toda a documentação, resultados de testes e transcrições de entrevistas e pareceres de cada candidato, é submetido a uma assembleia geral, que vota cada caso individualmente;
  17. Aprovação condicional – As assembleias têm o prazo de aproximadamente três meses para analisar se todas as condições de filiação foram atendidas. Se receber o aval, o candidato pode ingressar no partido. O departamento de organização local envia então os dados para registro condicional;
  18. Incorporação ao PC Chinês – Novos membros são incorporados a filiais e grupos partidários, nos quais passam por uma espécie de “estágio probatório”. É necessário continuar as sessões de treinamento e educação política;
  19. Juramento – Ao som do hino, os membros —agora chamados de “camaradas” (同志, tóngzhì)— discursam e fazem o juramento de lealdade ao partido. O PC Chinês orienta que essa cerimônia seja realizada em “ambiente pequeno, formal, sério e solene”;
  20. Participação e trabalho – Por um ano, os “camaradas” trabalham em organizações partidárias, participam de treinamentos e são enviados para conversas com a população. Ao final deste período, é necessário pedir a mudança de status para “filiação plena”;
  21. Parecer final – As organizações e grupos em que o “camarada” atuou são consultadas e emitem um relatório. Se tiver cumprido todo o processo apropriadamente, será convertido a membro pleno. A validação da conversão para o status mais alto geralmente leva até três meses e é anunciada pelo secretário do partido da região. Começa, então, a contagem do tempo de filiação, em que membros plenos mais seniores têm acesso a cargos e posições mais altas na estrutura do PC Chinês.

Fonte: Rede do Partido Comunista Chinês

Atualizações semanais

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Brasil deveria entrar na ‘nova rota da seda’ da China? Talvez já esteja https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/05/15/brasil-deveria-entrar-na-nova-rota-da-seda-da-china-talvez-ja-esteja/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/05/15/brasil-deveria-entrar-na-nova-rota-da-seda-da-china-talvez-ja-esteja/#respond Sat, 15 May 2021 17:57:01 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/8eddbfc77d6e01f9c8d1d5652f095deef203dbaedb0463bdb78dad0ac2938a4f_609f357537346-300x215.jpeg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=100 Os números alardeados pela propaganda oficial impressionam: 70 países participantes, US$ 690 bilhões em investimentos e um longo cinturão conectando o leste asiático à Europa, África e, mais recentemente, à América Latina.

Sob vários ângulos, a “nova rota da seda da China” —oficialmente “Iniciativa do Cinturão e Rota”— tinha tudo para se tornar o projeto do século, o ponto de virada que tornaria Pequim um grande centro do comércio internacional.

O cancelamento de acordos assinados pela Austrália com a iniciativa e as dúvidas quanto à capacidade de economias de menor porte honrarem débitos contraídos com os bancos chineses, porém, acenderam o alerta amarelo: faz sentido para o Brasil se juntar ao pacote bilionário de infraestrutura?

Anunciado em um discurso do líder chinês Xi Jinping no Cazaquistão, o projeto surgiu com menos coesão do que faz parecer o governo. Falando a estudantes da Universidade Nazarbayev, Xi pregou o “estreitamento dos laços econômicos, o aprofundamento da cooperação e a expansão do espaço de desenvolvimento na região da Eurásia. Devemos adotar uma abordagem inovadora e construir em conjunto um cinturão econômico ao longo da Rota da Seda”, disse ele, em referência ao lendário trajeto que ligava a Ásia à Europa por volta de 200 a.C.

Membro sênior do John L. Thornton China Center do Brookings Institution, David Dollar era emissário do Tesouro americano na embaixada dos EUA em Pequim à época do discurso. Em entrevista à Folha, ele conta que a criação da marca “nova rota da seda” foi menos um projeto novo e mais uma forma de dar coesão a uma série de iniciativas que a China já vinha desenvolvendo desde que começou a internacionalização de empresas nacionais e o fortalecimento de laços diplomáticos estratégicos.

“Eles já estavam desenvolvendo vários projetos no exterior desde 2008, e Xi Jinping criou uma marca para algo que já existia. Surpreendentemente, a reação da imprensa ocidental a esse discurso e o destaque que os jornais deram ao termo [nova rota da seda] foram os prováveis fatores a consolidar a iniciativa para os chineses. Já naquela época era, sem dúvidas, um importante pacote de incentivos econômicos voltados ao desenvolvimento, mas o slogan político ajudou a dar credibilidade”, opina o economista.

Chineses visitam exposição sobre Iniciativa do Cinturão e Rota durante conferência organizada pelo Ministério dos Recursos Humanos. OIT/Divulgação

A impressão de que a Iniciativa do Cinturão e Rota surgiu mais como uma campanha publicitária do que um projeto bem delineado talvez ajude a explicar as evidências coletadas por Dollar nos anos seguintes ao anúncio de Xi.

Acompanhando o desenvolvimento do projeto, o economista conta que, a despeito dos anúncios grandiosos, os países que resolveram aderir ao projeto não receberam maiores investimentos chineses —em comparação com as economias que decidiram não se juntar à rota.

“Se você pegar os discursos oficiais de Xi e os documentos chineses, é sempre possível encontrar referências ao Cinturão e Rota como o coração de uma grande estratégia conectando a Ásia Central à Europa e à África, seja por terra ou pelo mar. Porém, a maior parte dos investimentos chineses em infraestrutura não está concentrada neste corredor. O Brasil e vários países africanos, por exemplo, receberam muito mais dinheiro, mesmo que nem todos estejam oficialmente ligados ao projeto chinês.”

Diplomacia flexível

Pesquisadores dos investimentos estrangeiros no Brasil, os professores Fábio Morosini da UFRGS e Michelle Ratton Sanchez, da FGV-SP, acompanham há anos o linguajar jurídico dos contratos assinados por empresas chinesas. Conduzindo um levantamento sobre a participação da China no setor de energia elétrica brasileiro, eles avaliam que a indiferença quanto a aderir ou não a Iniciativa do Cinturão e Rota se dá pelo dinamismo dos acordos selados pelos chineses.

“Existe uma discussão grande sobre o que é o modelo de cooperação dos Estados Unidos, ou como funcionam os marcos regulatórios da União Europeia. Percebemos que parece não haver um modelo chinês. Há flexibilidade para adaptar negócios, o que possibilita entrar em mercados diferentes, avaliando as ferramentas regulatórias e sensibilizando as estratégias de acordo com o ambiente jurídico local”, afirma Sanchez.

Além disso, segundo Morosini, comparações preliminares entre os acordos da Iniciativa assinados com países asiáticos ou europeus e os memorandos em vigor no Brasil parecem não trazer grandes diferenças.

O professor afirma que o Brasil já consolidou a posição de principal destino de investimentos chineses na América Latina e maior parceiro comercial de Pequim na região, dinâmica que uma negativa à Iniciativa do Cinturão e Rota dificilmente mudaria.

“Estudamos acordos bilaterais assinados entre 2005 e 2018, o que nos permitiu concluir que o tipo de linguagem e as áreas estratégicas previstas nas relações sino-brasileiras são quase iguais [aos da Iniciativa do Cinturão e Rota]”, diz Morosini. “A provocação que fazemos é: será que ainda faz sentido debater se vale se juntar ou não à Iniciativa quando a China já conseguiu entrar no Brasil, digamos assim, utilizando de instrumentos jurídicos tão parecidos?”

Iniciativa avança pela América Latina

Se para o Brasil o debate não parece mais fazer sentido, outros países latino-americanos enxergam o projeto chinês como um farol de possíveis investimentos na região.

Nos memorandos de entendimento, promessas para a construção de grandiosos projetos de infraestrutura ajudam a seduzir economias menos robustas, com menores ofertas de investimento estrangeiro direto disponíveis. A realidade, contudo, mostra que a diplomacia chinesa tem encontrado dificuldade em viabilizar esses projetos e ainda não conseguiu “encher os olhos” dos países mais 
representativos na região.

Pesquisador associado ao Instituto Internacional de Estudos Asiáticos da Universidade de Leiden, Rafael Abrão conta que, originalmente, a América Latina não seria incluída no projeto chinês, mas se tornou integrante por uma demanda dos países locais, ávidos por dinheiro chinês.

Sem grande planejamento de antemão, os chineses anunciaram a chegada do projeto à região trazendo poucos investimentos novos e renomeando iniciativas antigas —e algumas até já concluídas— como parte do Cinturão e Rota.

“Os chineses vêm ampliando a relevância na região há muito tempo e a América Latina é essencial ao desenvolvimento deles, à medida em que se consolida como a principal fonte de commodities. Tem um pouco de propaganda [na Iniciativa], mas parece haver também um desejo genuíno de impulsionar uma infraestrutura que facilite o escoamento e a exportação dessas mercadorias para a China”, afirma Abrão.

O pesquisador destaca que todos os países latinos possuem déficits de infraestrutura e podem se beneficiar de possíveis parcerias com os chineses, embora seja necessário avaliar os riscos. Recentemente, a construção mal planejada de hidrelétricas no Equador usando dinheiro chinês deixou Quito em débito com o país, que agora quer ser ressarcido com petróleo, como previa o contrato inicial.

O fracasso do investimento prejudicou a imagem da China entre equatorianos e fez ressurgir o temor da “armadilha da dívida”, usada por países europeus e pelos EUA para acusar Pequim de coagir economias frágeis a assumirem grandes empréstimos, exigindo concessões quando não conseguem receber de volta o dinheiro.

“Esse risco não é recente e não se restringe à China. A própria Argentina está em uma situação bem delicada com o dinheiro que pegou do FMI. Mesmo assim, é importante que os países sejam responsáveis ao assumir compromissos de longo prazo com bancos chineses”, aconselha Abrão.

Dollar segue o mesmo entendimento. “Não gosto desse conceito de ‘armadilha da dívida’ porque não acredito nem por um segundo que chineses emprestam dinheiro já na expectativa de levar um calote. Se estes exemplos nos dizem algo, é que bancos chineses têm feito um trabalho ruim na análise de risco e que os países precisam escolher levantar projetos sustentáveis”.

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