China, Terra do Meio https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br Reportagens, análises geopolíticas e notícias de um dos mais importantes países do mundo: a China Fri, 19 Nov 2021 15:36:10 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 ‘11 de Setembro chinês’ moldou combate de Pequim ao terror https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/09/09/11-de-setembro-chines-moldou-combate-de-pequim-ao-terror/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/09/09/11-de-setembro-chines-moldou-combate-de-pequim-ao-terror/#respond Thu, 09 Sep 2021 18:57:14 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/d74e7eacfc8d9527eb6e9f3406950b9d06a5d148db757003c2ebeac1bba583ff_5ae2d17dbc0fc-300x215.jpeg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=267 Era noite de sábado, 1º de março de 2014 em Kunming, capital da província de Yunnan, quando um grupo de seis homens e duas mulheres invadiu a estação ferroviária da cidade

Com os rostos parcialmente cobertos, eles sacaram facas e espadas, iniciando um massacre. Durante cerca de dez minutos, o bando esfaqueou quem estivesse pela frente, sem distinção de gênero ou idade. Muitas pessoas conseguiram correr, mas as que caíam ou tinham problemas de mobilidade eram alcançadas e atacadas. 

A polícia chegou rapidamente ao local, neutralizando parte dos terroristas e prendendo os demais depois, mas o saldo da tragédia foi amargo: 31 mortos e 143 feridos.

Enquanto lidava com o luto e a estupefação, o país logo soube pela imprensa local dos primeiros detalhes do crime, como o de que os criminosos mortos pelas forças de segurança carregavam bandeiras do Turquestão Oriental. O nome faz referência à forma como separatistas chineses se referem a Xinjiang, e o incidente marcou a primeira investida violenta da minoria muçulmana uigur fora das fronteiras da província a oeste da China.

Atualmente detentora do status de região autônoma, Xinjiang tem uma história complicada. Ao longo de séculos, foi habitada por turcos nômades, que se misturaram a etnias da Ásia Central e Oriental. Em 1759, a área foi conquistada pela primeira vez pelo Império Qing, que perdeu o controle da região após levantes armados liderados por locais. 

Em 1877, voltou a ser dominada pelo imperador, mas o controle central se esvaiu com a queda do império, em 1911, abrindo espaço para o fortalecimento de senhores da guerra e a fundação de um Estado que contou apenas com breve apoio da União Soviética. Ao ganhar a guerra civil e assumir o controle da China, os comunistas conseguiram sedimentar a anexação ao próprio território.

Uigures não se parecem com os chineses da etnia han. Seus olhos não são puxados, o formato do rosto é semelhante ao dos turcos e o idioma local não guarda nenhuma semelhança com o mandarim padrão, falado pela maior parte do país. 

A despeito da anexação definitiva ao território continental chinês, o separatismo nunca perdeu força, e pequenos ataques terroristas eram comuns na região. Kunming foi um ponto fora da curva e a constatação, pela maioria dos chineses han, que o terrorismo, problema tão comum na Europa e nos Estados Unidos, também podia fazer vítimas na China.

Professor de política chinesa e pesquisador da dinâmica terrorista na China na Universidade de Kent, Pak Kuen Lee afirma que o ataque em Kunming foi “um divisor de águas”, causando “enorme impacto psicológico” entre os chineses. 

Embora o número de mortos tenha sido consideravelmente menor, não demorou até que a tragédia passasse a ser chamada por autoridades e jornalistas locais por uma analogia funesta: “o 11 de Setembro chinês”.

Ainda que evidências indiquem apoio ao menos indireto de radicais estrangeiros, nenhum grupo jamais assumiu a autoria do ataque. O governo chinês, por sua vez, responsabilizou o Movimento de Independência do Turquestão Oriental (ETIM, na sigla em inglês), uma suposta organização terrorista cuja existência nunca foi de fato comprovada.

“Para avaliar se a comparação é válida, é preciso estabelecer se houve um ataque terrorista coordenado, como foi com a Al Qaeda [no 11 de Setembro]. Especialistas fora da China são céticos quanto às alegações, e é mais provável que militantes uigures tenham colaborado com o Talibã e outros grupos radicais menores no Afeganistão e no Paquistão”, diz Lee.

“Como a guerra ao terror chinesa é, supostamente, contra o ETIM, há uma diferença marcante: as lutas chinesas contra o terrorismo são locais, enquanto os americanos têm ambições mais globais.”

Diante de uma pretensa atuação de uma organização terrorista dentro do país, a China começou a implementar em 2017 uma série de medidas no combate ao radicalismo islâmico. Desde Kunming, não houve nenhum outro ataque de grandes dimensões em território chinês, mas isso não impediu Pequim de estruturar uma robusta campanha destinada a controlar muçulmanos em Xinjiang.

Sob acusações de violação dos direitos humanos e de limpeza étnica, o país internou compulsoriamente milhões de uigures, construindo campos em que eles recebem aulas de mandarim, treinamento vocacional e educação patriótica. A prática religiosa é monitorada de perto e deve passar por aprovação prévia de funcionários do PC Chinês mesmo depois que internos deixam os chamados campos de reeducação.

O professor Lee diz que, ao classificar as ações como contraterrorismo, a China busca normalizar as decisões tomadas em Xinjiang e mostrar que não há diferenças significativas quanto às práticas já adotadas por outros países. “No cerne do problema está que os chineses [da etnia] han não se sentem seguros até que as minorias étnicas dentro da China sejam suficientemente ‘sinicizadas'”, ou seja, mais próximas da cultura han, pontua ele.

Professor de economia política internacional da Unesp, o sinólogo Marcos Cordeiro Pires discorda. Para ele, a China tradicionalmente conviveu bem com minorias de religiões diferentes desde a época do império. Alguns conflitos na Ásia Central, porém, reviveram o separatismo entre militantes radicais chineses.

“O grande despertar para o levante muçulmano na Ásia Central foram as guerras da Chechênia [1994-1996 e 1999-2000], com ativistas sunitas atuando próximos de povos com ascendência turca, como é o caso de Xinjiang. E 2014 coincidiu com o ano da ascensão do Estado Islâmico, também um grupo sunita responsável por internacionalizar práticas radicais entre muçulmanos de várias partes do mundo”, relembra Pires.

Ele defende que não há indícios sólidos para fundamentar acusações de “genocídio cultural” e que mesmo as campanhas de reeducação não são diferentes do padrão adotado em vários países. Para o professor, o currículo escolar em todas as partes do mundo sempre buscou criar “coesão e desenvolvimento dos cidadãos”, e as “táticas chinesas se mostram mais efetivas que a força bruta em conflitos militares como no Iêmen”.

“No início dos anos 2000, quando o atentado em Nova York aconteceu, a China tinha cerca de um quarto da renda per capita que tem hoje e não dispunha de potência para avançar políticas externas, preocupando-se mais em fortalecer o crescimento econômico. Episódios violentos fora da província de Xinjiang deram um senso de urgência ao assunto”, destaca.

Agora, o desafio mais premente, ambos os professores concordam, será administrar as relações com o Talibã no Afeganistão, país com o qual a China compartilha um pequeno trecho de fronteira. Para Lee, Pequim identificou relações entre os uigures e a facção. 

“A questão aqui não é se a China pode isolar Xinjiang dos grupos radicais –porque isso implica comprovar a existência, mas se o Talibã honrará sua promessa [de comedimento]. O novo regime é mais moderado do que o de 20 anos atrás, como Pequim espera ou deseja?”

Pires defende que “terroristas só existem enquanto lutam pelo poder; ao chegar ao governo, são geralmente oficiais e burocratas”. Partindo desse pressuposto, o sinólogo afirma que, por meio da Iniciativa Cinturão e Rota, o maior programa de projeção de influência econômica e política da era Xi Jinping, a China “pode ser capaz de reinserir e moderar o Afeganistão”.

“As relações estáveis dos chineses com Cabul certamente podem ajudar a criar garantias contra o financiamento de uigures radicais, evitando, em última instância, a insurgência islâmica radical dentro da própria China continental.”

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Queda de Cabul repercute na imprensa chinesa e representa xadrez geopolítico para Pequim https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/08/16/queda-de-cabul-repercute-na-imprensa-chinesa-e-representa-xadrez-geopolitico-para-pequim/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/08/16/queda-de-cabul-repercute-na-imprensa-chinesa-e-representa-xadrez-geopolitico-para-pequim/#respond Mon, 16 Aug 2021 20:39:37 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/ffcf2721672a8db710ea072d6db688297766d64a4e330a26408148b60ff8f4d3_6101356ce3621-300x215.jpeg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=254 A tomada de Cabul pelo grupo fundamentalista Taleban repercutiu com força na imprensa e nas redes sociais chinesas. Encabeçado pelas imagens de um helicóptero deixando a embaixada dos Estados Unidos no Afeganistão e pela comparação com cena similar em Saigon –atual Ho Chi Minh, capital do Vietnã–, em 1975, o tópico sobre a crise afegã no Weibo, espécie de Twitter chinês, atraiu mais de 33 milhões de postagens.

“Este é, sem dúvidas, um momento extremamente embaraçoso para os EUA e um duro golpe para o poder americano”, escreveu o jornal oficial Diário do Povo, conhecido como a “voz do Partido Comunista”. “Antes da queda de Saigon, o presidente sul-vietnamita Nguyen Van Thieu denunciou os Estados Unidos por sua traição, [chamando-os] de desumanos, irresponsáveis e não confiáveis. A mesma cena está agora se repetindo no Afeganistão.”

O tom nacionalista dos textos produzidos pela mídia estatal se refletiu nos fóruns virtuais. Enquanto as cenas de desespero dos afegãos corriam o mundo, comentários destacavam a rápida incursão militar dos fundamentalistas como uma humilhação aos americanos.

“A ascensão e a queda do status de uma potência mundial não parecem depender da economia, mas do resultado da guerra”, escreveu Chen Ping, professor da Universidade de Fudan e celebridade virtual, com quase 4 milhões de seguidores. Outro internauta fez um paralelo entre a situação no Afeganistão e a forma como os americanos lidaram com a pandemia de coronavírus, “novamente se tornando uma piada mundial”, enquanto outra postagem usava as fotos da evacuação da embaixada como um símbolo da “derrocada do imperialismo e dos reacionários, ambos tigres de papel”.

A maneira como a imprensa chinesa reagiu aos acontecimentos recentes no país vizinho não é despropositada. Autor do livro “The China-Pakistan Axis: Asia’s New Geopolitics” (O eixo China-Paquistão: a nova geopolítica da Ásia, inédito no Brasil), Andrew Small afirma que Pequim provavelmente usará o caos em Cabul como um exemplo aos seus vizinhos de que os americanos não são parceiros confiáveis.

“Certamente as imagens do helicóptero deixando uma cidade arrasada e tomada pelo Taleban são um símbolo de uma guerra longa e infrutífera. É de certa forma esperado que, a despeito da instabilidade causada pela queda de Cabul, Pequim faça paralelos com o que aconteceu quando os americanos perderam a guerra no Vietnã. Muitos veículos reproduziram uma entrevista do [secretário de Estado] Antony Blinken negando a derrota, enquanto as pessoas tentavam desesperadamente deixar a cidade sitiada”, analisa o pesquisador sênior do German Marshall Fund.

As semelhanças com o Vietnã em 1975, porém, param por aí. Para Small, os chineses agora precisarão se preocupar com um delicado xadrez geopolítico que traz instabilidade às suas fronteiras e ameaça interesses econômicos.

A China se adiantou à queda do governo afegão apoiado por Washington e recebeu no mês passado em Tianjin, a 110 quilômetros da capital, uma delegação encabeçada por Abdul Ghani Baradar, cofundador do Taleban. Logo após a fuga do presidente Ashraf Ghani, diplomatas chineses declararam ter a intenção de manter “relações amistosas” com o novo governo. A embaixada em Cabul não foi fechada e cidadãos chineses tampouco foram retirados do país, embora a representação diplomática tenha divulgado uma nota pedindo “muita atenção à situação de segurança”.

Especulações de que o reconhecimento da legitimidade do Taleban foram motivadas por interesses financeiros chineses na região foram levantadas pela imprensa ocidental. Small, entretanto, afirma que a postura pragmática da China denota preocupações com a segurança doméstica, e não uma tentativa imediata de lucrar com a situação. Ele também diz não acreditar que a China vá ocupar o vácuo de poder deixado pelos EUA, a exemplo do que aconteceu na Síria.

“A Rússia já tinha presença militar na Síria e substituiu os EUA quando as tropas americanas deixaram a região. Não é o caso dos chineses no Afeganistão, e não creio que a China esteja interessada em expandir a sua Iniciativa de Cinturão e Rota para lá. A estratégia parece ser a de manter o Afeganistão como um Estado tampão, impedindo que mantenham laços com grupos extremistas na região de Xinjiang, por exemplo. Pequim me parece relutante e provavelmente não deve colocar dinheiro no país imediatamente”, diz.

Além das agitações fronteiriças, o Afeganistão também representa uma peça importante em um quadro mais amplo e delicado: as relações chinesas com o Paquistão e a Índia.

Após os ataques do 11 de Setembro, os paquistaneses foram acusados por Washington de financiar atividades terroristas do Taleban e da Al Qaeda. Islamabad é uma parceira de longa data de Pequim e inimiga histórica dos indianos, mas a presença de milícias fundamentalistas apoiadas pelo Paquistão no território disputado da Caxemira tende a criar uma “delicada situação de segurança estratégica local” que alarma os dois países mais populosos do mundo.

Para Small, a Índia provavelmente precisará analisar cuidadosamente os riscos do Taleban e, mesmo com as desavenças com os chineses, deve se aproximar de Pequim na cobrança por moderação.

“As relações entre Índia e China estão delicadas neste momento, com estranhamentos militares na fronteira. Mas os dois países compartilham preocupações semelhantes quanto à insurgência de terroristas no sul da Ásia, já que nove trabalhadores chineses foram mortos no mês passado em um ataque financiado por terroristas afegãos na cidade paquistanesa de Dasu. Assim, é provável que o Paquistão seja dragado outra vez para a crise e sofra pressões de ambos os lados.”

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‘Governo Biden não tem estratégia para conter a China’, diz famoso ex-embaixador de Singapura https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/07/29/governo-biden-nao-tem-estrategia-para-conter-a-china-diz-famoso-ex-embaixador-de-singapura/ https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/07/29/governo-biden-nao-tem-estrategia-para-conter-a-china-diz-famoso-ex-embaixador-de-singapura/#respond Thu, 29 Jul 2021 13:30:54 +0000 https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/KishoreMahbubani_Arquivo-pessoal-300x215.jpg https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/?p=224 De perfil sereno e voz comedida próprios de quem construiu a vida na diplomacia, Kishore Mahbubani é o tipo de intelectual que costuma ser consenso mesmo em lados antagônicos. Ex-embaixador de Singapura, com mais de 30 anos na chancelaria do país (incluindo uma década na ONU) e outros 15 na academia, construiu fama por ser um dos mais notáveis analistas da conjuntura geopolítica asiática.

É valendo-se da longa experiência a serviço das relações internacionais que o singapurense se aventura a tentar destrinchar um dos temas mais espinhosos na diplomacia atual: o futuro da relação sino-americana e como ela deve impactar o mundo nas próximas décadas. Em “A China Venceu?” (Intrínseca, 368 páginas), lançado no Brasil nesta semana, Mahbubani destrincha, ponto a ponto, os principais entraves à cooperação entre chineses e americanos.

Como quem escreve um telegrama a um Ministério das Relações Exteriores e com as credenciais de quem acompanha o desenrolar dos eventos sem ser, necessariamente, integrante de nenhum dos lados, o professor escreveu o que ele próprio define como “um presente para os Estados Unidos” e um lembrete a Washington de que “o mundo mudou”.

Em entrevista à Folha, Mahbubani expande os temas do livro, faz previsões sobre como devem se desenrolar os principais problemas entre a China e o Ocidente e um alerta ao Brasil: na briga entre as duas potências, ele diz que Brasília deveria anunciar neutralidade de antemão e se eximir de tomar lado se quiser preservar seus próprios interesses nacionais.

Folha: Um documento produzido pelo Atlantic Council [tradicional think tank americano] inspirado na estratégia americana para a Guerra Fria sugere que, se os EUA quiserem conter a China, devem tentar atrair a Rússia para o lado americano, o que seria muito difícil em termos de opinião pública. Como os EUA devem equacionar essas divergências internas com seus objetivos geopolíticos em relação a Pequim?

Kishore Mahbubani: Os americanos não conseguem entender que o mundo mudou fundamentalmente. Não é só sobre a China, é o fim da era de dominação ocidental da história mundial. E quando [Joe] Biden quer enfrentar a China, o que faz? Ele ressuscita o G7, um clube do passado que dificilmente vai saber lidar com um desafio futuro. Os EUA não conseguem nem mesmo conceber a possibilidade de que qualquer potência possa se tornar mais forte do que eles. Foram o número 1 por 130 anos e provavelmente a sociedade mais bem-sucedida que já vimos na história da humanidade, mas a história também nos ensina que você não pode ser o número 1 para sempre, certo? Os EUA têm um quarto da população da China e apenas 250 anos, enquanto a China tem 5.000. Certamente é possível que a China se torne maior que os EUA.

F: O senhor mencionou em seu livro que, como a dominação dos EUA na Europa, é uma anomalia na história.

KM: É uma anomalia, mas, novamente, os americanos não podem aceitar isso. E para eles, o importante não é só se aliar à Rússia, é a necessidade de mudança total de mentalidade. O maior medo da Rússia não vai ser a Europa. Quer dizer, os europeus são tão pacíficos que não vejo a Europa caminhando para uma guerra, mas a China é um desafio real para eles. Eles têm a maior fronteira com a China. Os EUA poderiam tentar serem habilidosos e possivelmente tentar atrair a Rússia, mas, infelizmente, os americanos passaram pelo menos 30 anos humilhando a Rússia. Então a razão pela qual os EUA estão tendo tantos problemas para lidar com este novo desafio na China é porque não entenderam que cometeram erros fundamentais. E na verdade, nesse sentido, meu livro é um presente para os EUA, ao tentar dizer a eles “ei, o mundo mudou e você deve mudar também”.

F: Pelo jeito que o senhor fala, parece que essa oportunidade com a Rússia já se perdeu. Mesmo que os EUA queiram se envolver com a Rússia, não será fácil para Vladimir Putin virar a opinião pública e tentar cooperar com os EUA contra a China….

KM: Acho que pode ser difícil para Vladimir Putin, porque o Ocidente o demonizou muito. Sabe, depois de demonizar tanto alguém, é muito difícil se comprometer. A razão pela qual eu coloquei a Crimeia para ilustrar os erros estratégicos dos EUA no livro é porque os americanos ameaçaram expandir a Otan para a Ucrânia. A Ucrânia é tão importante em termos de consciência russa, de compreensão russa, que quando os EUA tentaram humilhar a Rússia na Ucrânia, eu não entendi nada. E de muitas maneiras a Ucrânia poderia ter sido salva se funcionasse como uma espécie de Estado-tampão, ao invés de membro da Otan, como tentaram fazer.

F: Falando em G7, uma das principais viagens que Biden fez nos primeiros meses na Presidência foi participar da cúpula do grupo, quando anunciaram a intenção em criar um fundo de crédito para infraestrutura nos países em desenvolvimento, e assim contrapor a Iniciativa de Cinturão e Rota [informalmente conhecida como “nova rota da seda chinesa”]. Até que ponto isso será eficaz para lidar com os países africanos e asiáticos?

KM: Bem, acho que se o presidente Biden deseja fornecer uma fonte alternativa de financiamento para o desenvolvimento de infraestrutura no Terceiro Mundo, é uma ideia muito boa. Se eu sou um pequeno país na África e a China diz “eu posso construir uma ponte para você” e os EUA também se oferecem, então poderei escolher o que for melhor. Mas a China já gastou US$ 1 trilhão na iniciativa de Cinturão e Rota, enquanto os EUA estão tendo todas as dificuldades orçamentárias para construir sua própria infraestrutura.

F: Sim, o pacote de infraestrutura de Joe Biden está há algum tempo parado no Senado…

KM: Exatamente. Sabe, quando fui pela primeira vez aos EUA em 1974, aquele era o Primeiro Mundo. Pequim era o Terceiro Mundo. Hoje, se você vai para Pequim, o aeroporto de Pequim e o aeroporto de Xangai são de Primeiro Mundo, enquanto o aeroporto John F. Kennedy [Nova Iorque] e o Washington Dulles [na capital americana] são de Terceiro Mundo. Se você quiser pegar um trem do Terceiro Mundo, pegue o trem de Boston para Nova Iorque, bem diferente do trem de Pequim para Xangai. Se os EUA estão falando sério sobre querer ajudar a melhorar a infraestrutura de outros países, eles deveriam primeiro melhorar sua própria infraestrutura. Uma das estatísticas mais surpreendentes que alguém me deu foi que, na China, você pode consertar uma ponte em 43 horas, e nos EUA, leva cinco anos. Acho que há um certo grau de irrealidade no que os EUA estão fazendo. É claro que podem contrapor o que os chineses vêm fazendo na África, mas precisam estar à altura.

F: Os chineses são bem conhecidos por ignorar disputas internas, usualmente não mexem com você se você não mexer com eles. Já os EUA geralmente vinculam esse tipo de acordo econômico a uma série de compromissos. Quão eficaz será seduzir esses países, muitos deles em desacordo com o modelo americano de democracia e padrões de direitos humanos, se o dinheiro vier acompanhado de vigilância?

KM: Para ser justo com os EUA, embora digam que a disputa com a China é uma competição de democracias contra autocracias, eles não hesitam em fazer parcerias com autocracias. Estive na mesma sala com o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, há apenas duas horas e ele estava dizendo que os EUA não hesitarão em apoiar o Vietnã contra a China. O Vietnã é uma autocracia. Todos os países colocarão seus interesses nacionais em primeiro lugar, e não os interesses de outros países.

F: Sobre a América Latina, há algo que certamente preocupa os governantes da região. Se chegarmos a uma situação de ter de decidir entre a China e os EUA, o Brasil estará em um posição muito difícil, porque geográfica e culturalmente, estamos mais próximos dos EUA, mas, economicamente, estamos nos tornando cada vez mais dependentes da China. O que vai acontecer com esses tipos de Estados que orbitam em torno de ambos os países?

KM: Essa não é uma pergunta sendo feita apenas pelo Brasil, mas por 193 países no mundo. Para eles, aconselho a lerem um artigo do premiê de Singapura [Lee Hsien Loong] para a [revista] Foreign Affairs quando ele diz, muito claramente, que Singapura é amiga dos Estados Unidos e da China. Não queremos escolher e isso é bom. Novamente, quando ouvi o secretário de Defesa, Lloyd Austin, ele mencionou que entende perfeitamente essa posição.

Nós queremos ser amigos de ambos. Acho que essa sua pergunta é importante, porque é muito importante para países como o Brasil não esperar até que você seja obrigado a escolher. Vocês deveriam proclamar com antecedência que esperam manter laços de amizade com os dois países. Seria injusto os EUA pedirem ao Brasil uma escolha. Mas o Brasil junto com outros países da América Latina, África e Ásia, deveriam se reunir e deixar bem claro que se quiserem brigar, que vão em frente, mas não nos peçam para nos juntarmos a vocês.

F: Você diz no seu livro que não havia clareza entre os funcionários do governo [Donald] Trump quanto à estratégia por trás das tarifas na guerra comercial —se era uma tentativa de desconectar as economias chinesa e americana ou uma forma de obrigar Pequim a recuar em práticas que consideravam injustas. Biden foi eleito, mas ainda não aboliu essas tarifas. Se Trump não tinha um objetivo claro, Biden tem?

KM: Durante toda a campanha, Biden costumava dizer consistentemente que a guerra comercial de Trump contra a China não prejudicou a China. Isso é verdade. Mas nos EUA, há uma histeria anti-China muito forte que se apoderou dos país. E assim, embora os EUA sejam um filho da civilização ocidental, um filho do Iluminismo ocidental e, portanto, deveriam tomar decisões com base na razão, na lógica e na ciência. Mesmo assim, não conseguem fazer a coisa razoável e lógica que é retirar essas tarifas. De certa forma, prova o ponto-chave em meu livro, que os EUA estão agora tão comprometidos com essa luta geopolítica contra a China que, na verdade, estão prejudicando seus próprios interesses. E nesse sentido eu diria que, assim como Trump não tinha nenhuma estratégia de longo prazo, até o momento, o governo Biden também não tem.

F: A China acaba de encerrar as comemorações dos 100 anos do PC Chinês e a festa foi uma oportunidade para Xi Jinping alardear as conquistas da sigla ao longo da história. Mas também foi um lembrete ao Ocidente dos principais pontos de tensão nas relações: a situação de Hong Kong em 2019, a militarização do mar do Sul da China, Taiwan e a questão dos uigures em Xinjiang… Esses elementos se tornaram inevitáveis e continuarão a impedir o diálogo entre o Ocidente e a China nos próximos anos?

KM: Nenhuma dessas questões impedirá o crescimento da China. E Hong Kong, como você sabe, faz parte da China. No caso do mar do Sul da China, você ouvirá muito barulho, mas não haverá batalhas militares. Acredito que os principais envolvidos conseguirão alcançar um compromisso pacífico a menos, é claro, que haja uma escaramuça entre uma embarcação naval americana e uma embarcação naval chinesa. Mas para os principais afetados, como a Malásia, Brunei, Filipinas, Vietnã, eles têm reivindicações conflitantes com a China, mas devem chegar a um acordo.

F: Taiwan, porém, continua sendo um problema.

KM: É claro, mas Taiwan pode permanecer pacífica se os EUA estabelecerem um entendimento com a China em cumprir o que prometeu nos anos 1970: manter relações oficiais com Pequim e relações não oficiais com Taiwan. Portanto, se esse for o entendimento, não haverá mudança.

F: Mas Xi Jinping tem repetido sucessivas vezes que não quer empurrar esta questão para a próxima geração. Isso não pode ser considerado um sinal de alerta da liderança chinesa?

KM: Enquanto nenhum esforço for feito para mudar o status quo, a paz pode permanecer no estreito de Taiwan. Se alguém tentar tornar Taiwan independente, aí sim a China declarará guerra e é por isso que hoje, quando ouvi o secretário de Defesa, fiquei feliz que ele tenha repetido duas ou três vezes que os EUA estavam comprometidos com a política da China única.

F: O termo “política de China única” é bastante ambíguo porque você não está pressupondo qual China é a única China.

KM: Uma vez que os EUA estabeleceram relações com Pequim, eles reconhecem o governo de Pequim como o governo legítimo da China. Mesmo os funcionários do Departamento de Estado precisam renunciar antes de serem destacados para Taiwan. Então, eu acho que, contanto que eles não mudem a fórmula atual, estaremos bem. Portanto, devemos encorajar os EUA e a China apenas a manter o status quo em Taiwan e não pressionar pela independência, porque se isso acontecer, certamente haverá problemas para os taiwaneses.

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