‘11 de Setembro chinês’ moldou combate de Pequim ao terror

Era noite de sábado, 1º de março de 2014 em Kunming, capital da província de Yunnan, quando um grupo de seis homens e duas mulheres invadiu a estação ferroviária da cidade

Com os rostos parcialmente cobertos, eles sacaram facas e espadas, iniciando um massacre. Durante cerca de dez minutos, o bando esfaqueou quem estivesse pela frente, sem distinção de gênero ou idade. Muitas pessoas conseguiram correr, mas as que caíam ou tinham problemas de mobilidade eram alcançadas e atacadas. 

A polícia chegou rapidamente ao local, neutralizando parte dos terroristas e prendendo os demais depois, mas o saldo da tragédia foi amargo: 31 mortos e 143 feridos.

Enquanto lidava com o luto e a estupefação, o país logo soube pela imprensa local dos primeiros detalhes do crime, como o de que os criminosos mortos pelas forças de segurança carregavam bandeiras do Turquestão Oriental. O nome faz referência à forma como separatistas chineses se referem a Xinjiang, e o incidente marcou a primeira investida violenta da minoria muçulmana uigur fora das fronteiras da província a oeste da China.

Atualmente detentora do status de região autônoma, Xinjiang tem uma história complicada. Ao longo de séculos, foi habitada por turcos nômades, que se misturaram a etnias da Ásia Central e Oriental. Em 1759, a área foi conquistada pela primeira vez pelo Império Qing, que perdeu o controle da região após levantes armados liderados por locais. 

Em 1877, voltou a ser dominada pelo imperador, mas o controle central se esvaiu com a queda do império, em 1911, abrindo espaço para o fortalecimento de senhores da guerra e a fundação de um Estado que contou apenas com breve apoio da União Soviética. Ao ganhar a guerra civil e assumir o controle da China, os comunistas conseguiram sedimentar a anexação ao próprio território.

Uigures não se parecem com os chineses da etnia han. Seus olhos não são puxados, o formato do rosto é semelhante ao dos turcos e o idioma local não guarda nenhuma semelhança com o mandarim padrão, falado pela maior parte do país. 

A despeito da anexação definitiva ao território continental chinês, o separatismo nunca perdeu força, e pequenos ataques terroristas eram comuns na região. Kunming foi um ponto fora da curva e a constatação, pela maioria dos chineses han, que o terrorismo, problema tão comum na Europa e nos Estados Unidos, também podia fazer vítimas na China.

Professor de política chinesa e pesquisador da dinâmica terrorista na China na Universidade de Kent, Pak Kuen Lee afirma que o ataque em Kunming foi “um divisor de águas”, causando “enorme impacto psicológico” entre os chineses. 

Embora o número de mortos tenha sido consideravelmente menor, não demorou até que a tragédia passasse a ser chamada por autoridades e jornalistas locais por uma analogia funesta: “o 11 de Setembro chinês”.

Ainda que evidências indiquem apoio ao menos indireto de radicais estrangeiros, nenhum grupo jamais assumiu a autoria do ataque. O governo chinês, por sua vez, responsabilizou o Movimento de Independência do Turquestão Oriental (ETIM, na sigla em inglês), uma suposta organização terrorista cuja existência nunca foi de fato comprovada.

“Para avaliar se a comparação é válida, é preciso estabelecer se houve um ataque terrorista coordenado, como foi com a Al Qaeda [no 11 de Setembro]. Especialistas fora da China são céticos quanto às alegações, e é mais provável que militantes uigures tenham colaborado com o Talibã e outros grupos radicais menores no Afeganistão e no Paquistão”, diz Lee.

“Como a guerra ao terror chinesa é, supostamente, contra o ETIM, há uma diferença marcante: as lutas chinesas contra o terrorismo são locais, enquanto os americanos têm ambições mais globais.”

Diante de uma pretensa atuação de uma organização terrorista dentro do país, a China começou a implementar em 2017 uma série de medidas no combate ao radicalismo islâmico. Desde Kunming, não houve nenhum outro ataque de grandes dimensões em território chinês, mas isso não impediu Pequim de estruturar uma robusta campanha destinada a controlar muçulmanos em Xinjiang.

Sob acusações de violação dos direitos humanos e de limpeza étnica, o país internou compulsoriamente milhões de uigures, construindo campos em que eles recebem aulas de mandarim, treinamento vocacional e educação patriótica. A prática religiosa é monitorada de perto e deve passar por aprovação prévia de funcionários do PC Chinês mesmo depois que internos deixam os chamados campos de reeducação.

O professor Lee diz que, ao classificar as ações como contraterrorismo, a China busca normalizar as decisões tomadas em Xinjiang e mostrar que não há diferenças significativas quanto às práticas já adotadas por outros países. “No cerne do problema está que os chineses [da etnia] han não se sentem seguros até que as minorias étnicas dentro da China sejam suficientemente ‘sinicizadas'”, ou seja, mais próximas da cultura han, pontua ele.

Professor de economia política internacional da Unesp, o sinólogo Marcos Cordeiro Pires discorda. Para ele, a China tradicionalmente conviveu bem com minorias de religiões diferentes desde a época do império. Alguns conflitos na Ásia Central, porém, reviveram o separatismo entre militantes radicais chineses.

“O grande despertar para o levante muçulmano na Ásia Central foram as guerras da Chechênia [1994-1996 e 1999-2000], com ativistas sunitas atuando próximos de povos com ascendência turca, como é o caso de Xinjiang. E 2014 coincidiu com o ano da ascensão do Estado Islâmico, também um grupo sunita responsável por internacionalizar práticas radicais entre muçulmanos de várias partes do mundo”, relembra Pires.

Ele defende que não há indícios sólidos para fundamentar acusações de “genocídio cultural” e que mesmo as campanhas de reeducação não são diferentes do padrão adotado em vários países. Para o professor, o currículo escolar em todas as partes do mundo sempre buscou criar “coesão e desenvolvimento dos cidadãos”, e as “táticas chinesas se mostram mais efetivas que a força bruta em conflitos militares como no Iêmen”.

“No início dos anos 2000, quando o atentado em Nova York aconteceu, a China tinha cerca de um quarto da renda per capita que tem hoje e não dispunha de potência para avançar políticas externas, preocupando-se mais em fortalecer o crescimento econômico. Episódios violentos fora da província de Xinjiang deram um senso de urgência ao assunto”, destaca.

Agora, o desafio mais premente, ambos os professores concordam, será administrar as relações com o Talibã no Afeganistão, país com o qual a China compartilha um pequeno trecho de fronteira. Para Lee, Pequim identificou relações entre os uigures e a facção. 

“A questão aqui não é se a China pode isolar Xinjiang dos grupos radicais –porque isso implica comprovar a existência, mas se o Talibã honrará sua promessa [de comedimento]. O novo regime é mais moderado do que o de 20 anos atrás, como Pequim espera ou deseja?”

Pires defende que “terroristas só existem enquanto lutam pelo poder; ao chegar ao governo, são geralmente oficiais e burocratas”. Partindo desse pressuposto, o sinólogo afirma que, por meio da Iniciativa Cinturão e Rota, o maior programa de projeção de influência econômica e política da era Xi Jinping, a China “pode ser capaz de reinserir e moderar o Afeganistão”.

“As relações estáveis dos chineses com Cabul certamente podem ajudar a criar garantias contra o financiamento de uigures radicais, evitando, em última instância, a insurgência islâmica radical dentro da própria China continental.”

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